sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Indiscutível autoridade paterna


-Ô Gustavo, é pra levantá que daqui a pouco nós vamo almoçá.
O corpo permanecia imóvel na cama, e o fraco barulho de respiração, quase um ronco inaudível, misturava-se ao som do vento assoviando pelas frestas da veneziana, que impedia a luz de passar. O irmão estava parado na porta, por onde entrava a única claridade que iluminava o quarto e, como Gustavo não se mexeu, aproximou-se e repetiu, cutucando:
- Ô Gustavo. Ô meu, já é onze horas. Levanta que tem que ir almoçá.
Gustavo virou-se de leve para o lado, e abriu os olhos devagar. Afastou os cabelos do rosto e esfregou as pálpebras com os punhos, já que a visão estava embaçada. Na boca, o gosto seco e amargo de quem acabou de acordar, e o corpo, sem vontade, contrariava qualquer tentativa de levantar-se.
- Que horas são? – perguntou, coçando o saco com uma das mãos, e com a outra tateando o bidê em busca do relógio.
- Onze horas meu. O pai pediu pra levantá que hoje nós vamo almoçá fora.
- Ai que saco.
O quarto cheirava a suor. Nessas madrugadas quentes nem que dormisse nu e com a janela aberta e ventilador ligado conseguia impedir a transpiração. Precisava de um banho. A contragosto, levantou, escovou os dentes e entrou embaixo do chuveiro, deixando a água gelada despertar-lhe de imediato e lavar-lhe a pele salgada.
Nesta manhã sentia-se muito melhor do que em todas as outras manhãs da última semana, em que acordara com fortes ressacas resultantes das displicências noturnas. Enquanto vestia-se, orgulhou-se de ter permanecido em casa na noite anterior lendo um livro, ao invés de ir encher a cara, como estava acostumado. Certamente, a recompensa veio no dia seguinte, quando pôde ir ao banheiro escovar os dentes pacientemente, e não precisou abraçar-se ao vaso para vomitar. E, passando a língua pela boca, pôde, com prazer, constatar que não sentia a corriqueira mistura de gosto etílico ao amargo de vômito.
Quando caminhava em direção à cozinha para tomar um copo de água, passou em frente à porta do escritório onde seu pai trabalhava. Porra, em pleno sábado! Este era um serviço extra. O pai era bancário durante o dia, mas durante a noite e aos fins de semana exercia as atividades de contador para ganhar um dinheirinho a mais e para não ficar com a mente vazia. “Mente parada só pensa besteira”, dizia o pai, para justificar o excesso de serviço que assumia.
Ao passar pela porta do escritório, que estava aberta, o pai apenas olhou por cima do ombro e imediatamente chamou:
- Gustavo.
- Sim?
- Tu vai almoçar com a gente? – perguntou, retornando os olhos para os papéis e calculadora.
- Ué, não foi por isso que me acordaram?
- Então o senhor vai trocar essas meias.
- Quê?
O pai parou de calcular, olhou para trás novamente, e repetiu.
- Se quiser almoçar conosco, vai trocar essas meias.
Gustavo olhou para os pés, sem entender. O par de meias vermelhas com listras pretas era um de seus favoritos. Mas, conhecendo o pai de longa data, sabia que não adiantava discutir, que era só para se incomodar. No mínimo ele achou minhas meias extravagantes demais. Imaginem só, o que as pessoas vão pensar se o filho do Leovandro aparecer vestido assim no restaurante! Vai ser um escândalo!
Preferiu guardar suas ironias para si. Não quis arranjar confusão logo pela manhã. Mas foi preciso muito esforço, pois aquelas mesquinharias todas do pai sempre lhe deixavam doido da vida. Implicar com minhas meias, veja só! Será que não tem nada melhor pra se preocupar?
Dirigiu-se à cozinha e encheu um copo com água. Enquanto bebia, a mente divagava a respeito de coisas que estavam lhe perturbando: trabalhos da faculdade atrasados, o emprego excessivamente burocrático no banco que o deixava insatisfeito, a namorada que lhe prendia em amarras sentimentais e o isolava do mundo, além de outras coisas que costumam incomodar um jovem de classe média. Seu devaneio foi interrompido quando percebeu o reflexo do próprio rosto no vidro da janela da cozinha. Um rosto horrível. Meu deus, preciso cortar esses cabelos. E essas espinhas, que merda. E é melhor ir fazer essa barba. Merda. Eu, só nascendo de novo.
Na verdade, as preocupações com a aparência eram um jeito de findar com todas as outras preocupações existenciais que sempre lhe enchiam o saco. Andava de um lado para o outro pensando no porque disso e daquilo, e, quando o cérebro começava a sentir-se esgotado, como se por uma autodefesa, fazia-lhe contemplar a própria imagem e devolvia-lhe, assim, uma enigmática resposta para tudo. Um sentido.
Serviu mais água no copo e voltou a beber. O pai entrou na cozinha, apressado, fechando as janelas da casa. Olhou para Gustavo de cima a baixo, e disse:
- Vai trocar essas meias.
Gustavo não respondeu. Aparentando paciência, tomou vagarosamente a água do copo. Perdeu-se em devaneios por mais alguns minutos. O pai, tendo acabado de fechar todas as janelas do primeiro andar, voltou à cozinha:
- Tá dormindo ainda? – disse, dando-lhe um tapa nas costas - Acorda, ninguém quer ficar te esperando, estamos com fome. E vai trocar as meias.
O pai saiu e subiu as escadas para fechar as janelas no andar de cima. Essa era realmente uma característica de Gustavo: perder-se em pensamentos. Mas apenas uma característica, não sabia dizer se era um defeito ou uma virtude, estava apenas consciente de ser assim. Muitas vezes isso lhe causava sérios problemas. Quando estava tomando banho, desligava-se do mundo e passava trinta ou quarenta ou cinqüenta minutos embaixo do chuveiro, divagando, pensando, e o pai, raivoso, sempre batia na porta com força e berrava:
- Vamos sair desse banho! Tá achando que eu sou teu escravo!? Não é a toa que a conta de água e de luz sempre tão nas alturas! Vou começar a te fazer pagar!
Quando estava no serviço – era caixa de banco – atendendo aos clientes da sempre extensa fila, por vezes ouvia algum comentário ou presenciava alguma cena que lhe fazia pensar, e desligava-se. Passava a atender as pessoas automaticamente, mas estava com a cabeça em outro lugar. Freqüentemente, isso significava problemas para fechar o caixa no fim do dia, e lá ia Gustavo, tirar um pouco do seu salário para cobrir o furo.
Apesar disso, mesmo sabendo de todos os problemas que “desligar-se” pode causar, não conseguia ser diferente. Acho que tenho alguma disfunção, sei lá, algum problema em prestar atenção nas coisas ao meu redor. E os amigos sempre falavam: Não sei como o Gustavo pode ser tão distraído, está sempre longe, viajando.
Tão isso tudo é verdade que estava no banheiro, barbeando-se, e parou-se para perguntar a si mesmo: nossa, como vim parar aqui? Chegou lá sem perceber, distraído que estava. Nem notou que o pai passou pela porta do quarto e lhe repetiu para que trocasse as meias. Não notou também quando passou o creme de barbear no rosto e quando começou passar a gilete. Nada disso. Só notou quando a dor de um corte sob o nariz lhe fez despertar. Um veio de sangue começou a escorrer devagar, manchando de rosa a branca espuma do creme. E resolveu prestar mais atenção no que estava fazendo.
Ouviu um barulho de buzina. O pai e o irmão já estavam no carro lhe esperando para partir ao encontro da mãe no restaurante. A buzina soou novamente: estavam impacientes. Pegou um pedaço de papel higiênico para cobrir o corte e desceu as escadas correndo. Quando entrou no carro, o pai olhou seus pés:
- Eu não mandei trocar as meias? Tu tá me desafiando?
- Ah, eu esqueci.
- Não me desafie, piá, não me desafie.
Gustavo não estava mentindo. Havia realmente esquecido de trocar as meias. Porra, eu tenho coisas tão mais importantes pra me preocupar! Odiava ser tratado daquele jeito autoritário e, apesar de estar acostumado com a prepotência do pai, não conseguia deixar de sentir raiva.
Trocou as meias e voltou para o carro. O pai deu a partida e, enquanto tirava o carro de ré da garagem, foi dizendo, o rosto vermelho:
- Tu sabe que eu não gosto que me desafiem!
- Eu esqueci. Foi sem querer.
- Tá sempre no mundo da lua. Sempre viajando. Quando vai acordar pra vida, meu filho? Olha as meias que tu tava usando.
- Ah pai, pelo amor de deus.
- Que foi? Vai me desafiar?
O pai cutucava demais, aquele petulante. Gustavo irritou-se:
- Ora, não era você que não queria ficar com a mente vazia? Acho que anda te ocupando com as coisas erradas, porque não está enchendo com nada isso daí – disse, cutucando com o nó dos dedos o crânio do pai.
- O quê? – vociferou o pai, rosto vermelho.
- Desse jeito, reparando na roupa dos outros, já começou mal...
- Quê? Olha a boca!
- Não tem nada melhor pra se importar?
Gustavo perdia cada vez mais o controle da situação, e sabia disto, pois via o pai ficar cada vez mais vermelho de raiva, segurando-se para não lhe desferir um tapa, e cuspindo cada vez mais enquanto falava. Começaram a discutir desordenadamente, tornando a conversa ininteligível para o irmão, que acompanhava assustado àquilo tudo.
- Não gosta de ser criticado, não é? Tudo isto é inteligência? – continuou Gustavo, com ironia na voz.
- Tu te cuida!
- Esta prepotência toda, esta vontade de ser o mandão, o dono da verdade, essa é a tua inteligência? tua mente ocupada?
Um barulho surdo e depois silêncio. O pai respirava ofegante, e Gustavo estava atônito congelado com a boca aberta, pronta para pronunciar uma palavra que fora silenciada pela agressão. Não acreditava que, aos vinte anos, ainda poderia apanhar do pai. Ficou com vontade de pegar o homem pelo pescoço, esganá-lo, esbofeteá-lo, recuperar seu orgulho perdido. Mas desistiu. Ainda dependia do pai, sob vários aspectos, e permaneceu submisso.
- Na volta vamos ter uma conversa séria.
Gustavo concordou com a cabeça. O rosto ainda pulsava no lugar onde fora atingido. O irmão estava assustado.
Ao chegar no restaurante, foi em direção ao banheiro sem perceber, mas apenas para cumprir o protocolo de lavar as mãos antes de comer. Novamente, despertou com sua imagem no espelho. Um rosto horrível. Meu deus, preciso cortar esses cabelos. E essas espinhas, que merda. Caralho, olha essa mancha na cara... todo mundo vai sacar que eu apanhei do velho. Merda.
Eu, só nascendo de novo.
E em outra família.


Matte



3 comentários:

Fabiane Bardemaker disse...

Não né...
esse tal de Câncer!!!!! Tinha que ser!
Shuashua

E o matte! Por que tu sempre escolhe esse texto para publicar nos blogs???

Nananinanão

Beijos gurizes e até

Anônimo disse...

mas esse aí já é véio, matte!
poste outro!

e vá trocar essas meias, seu coiso!

=*

Canceriano sem Lar disse...

A submissão não é mais que medo de desafiar os obstáculos da vida. Se quiser de verdade, as coisas podem mudar... basta perder o medo de errar... ótimo texto do Matte