domingo, 25 de novembro de 2007

(S)Em tempo

Incontáveis e inocentes horas de espera
fila indiana para rotineira burocracia
relógio-ponto não dignifica; condiciona e policia
Incolor, outro entre tantos dias se encerra

No templo de mil mentiras pedia perdão pela libido
anestesia via controle-remoto inoculada lentamente
frêmito de angústia, último suspiro impaciente
- Fui enganado! Usurpado! Iludido...

O sangue gélido acusa a hora de morrer
pior é a certeza de não ter conseguido viver
Finalmente querendo gritar, despedia-se mudo

Enfim...
a morte é o fim
Eis tudo.

Poi Zé

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Cale a boca e faça cara de paisagem!


George Méliès, cineasta francês, disse “cale a boca e faça cara de lua” para o ator que fazia o papel principal em um de seus filmes, Viagem à Lua, do ano de 1902, porque ele estava reclamando da repercussão que o filme teria. Bom, como se faz cara de lua eu não faço a mínima idéia, mas, na última semana, por conta do meu trabalho de “garota de estande” na Efapi, tive que aprender a fazer uma cara que eu não costumo ostentar: cara de paisagem. Sim, cara de paisagem, sabe? Como explicar? Sabe aqueles quadros que as avós costumam ter na sala? Com um pôr-do-sol ao fundo, o mar, umas palmeiras… Tudo lindo, tudo tranqüilo, a vida é perfeita… Mais ou menos assim. Como não costumo ser simpática - muito pelo contrário, tenho cara de chata, mal educada, antipática e anti-social, metida, arrogante, etc. - isso, dentre outras “exigências” do emprego, me proporcionou momentos de reflexão a respeito de hipocrisia, e principalmente, relacionadas a questões ligadas à estética.

Bom, ser garota de estande tem muitas desvantagens, ao contrário do que pensam as pessoas que ficam passando e pegando os brindezinhos de plástico que todas as empresas dão: passar o dia todo de pé, de salto alto (esse é o pior, pelo menos pra mim), usando uniforme (no meu caso, de manga comprida, naquele calor infernal), maquiagem, unhas e cabelos arrumados e mais um monte de frescuras que o salário não compensa. Não pra mim. Mas a velha desculpa de viver “entre o fim do mundo e o fim do mês” me dá apoio nessas horas, assim como em muitas outras. É comum nos escondermos atrás de máscaras de necessidade para justificar nossos atos quando estes são um tanto quanto controversos.

Ficar dizendo “ois”, “boas tardes”, “bons dias” e “boas noites”, cheia de sorrisos para pessoas que você nunca viu, sendo que tem um calo enorme no teu garrão e o sapato bico fino emprestado (não, eu não tenho um!) está apertando teu mindinho que você já nem sente mais, além de você estar morrendo de calor dentro daquele uniforme, que além de ser feio é apertado, e pensar que você ainda vai trabalhar mais umas cinco horas naquele dia e uns sete dias naquela semana, incluindo sábado e domingo e ” ah, acabei de lembrar que tem trabalho de filosofia pra fazer, e de língua portuguesa e de redação e de fotografia!!!” Não dá. É simplesmente impossível ser simpática numa hora dessas.

Como eu posso ficar fazendo cara de paisagem praquela gente, que além de me ser estranha, está lá gastando a grana que não tem, ou que demorou o mês inteiro pra ganhar e que vai fazer a maior falta depois, em coisas desnecessárias como um espetinho de carne de gato ou uma tiara de anteninhas cor-de-rosa? Além do mais, a maioria das pessoas que visitou a feira estava lá só porque sabia que todas as outras pessoas da cidade também estariam, assistindo a shows que não escolheram, gastando sola de sapato pra olhar coisas que seu dinheiro não pode comprar, nem mesmo se for a prestações de perder de vista…

Se eu pudesse, passaria os dez dias de feira em casa, dormindo, ou lendo ou ouvindo música ou fazendo qualquer outra coisa, que seria muito mais interessante e produtivo do que, como a maioria dos outros, ver, pela nonagésima sétima vez o mesmo show do Daniel ou Bruno e Marrone, ou qualquer outra dupla sertaneja – não faz diferença, já que todas cantam as mesmas músicas – e ser cúmplice destas coisas todas. Ou pior, ficar fazendo cara de paisagem pra todos eles.

Acho que o fim do mundo e o fim do mês não ficam tão longe assim um do outro.

.suzi.

Claustrophobia

Mal consigo respirar...
Vós desejais o alcançar o topo. Sucesso.
Mas este é um espaço mui restrito
Pilhéria do sistema, não há lugar para todos no cume
Poucos em detrimento de muitos. Mesmo
assim quereis...
Ó insaciável demência.

As palavras vestem máscara de anjo & de
demônio para a batalha.
Ferem como farpa pontiaguda. Vence
o mais impetuoso & eficaz com o machete.
Ele pode fazer até a alma de um drugui sangrar
Com a ultraviolência de
uma panthera negra faminta & traiçoeira
Dilacera a carne e os sonhos no jantar

Como o garoto que brinca na rua poeirenta ao pôr-do-sol,
eu só quero ser puro.
Ansio por um ar que dê fôlego a meu
pulmão desajustado & cancerígeno.
Os puros não choram lágrimas quentes de
solidão...

Poi Zé

terça-feira, 20 de novembro de 2007

“Deus quis assim” (velhas carolas II)

Ave Maria cheia de graças... Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores e agora e na hora de nossa morte. Amém!
- Ai, velório em plena segunda-feira de manhã ninguém merece, né Izolde?!
- É verdade. E logo hoje que tinha reservado para tirar o pó da estante! Comecei mal a semana!
- Pois é. Eu também deixei todo o serviço de lado por ter que vir aqui. Sabe como é, né?! Vizinho é vizinho. E além do mais, se a gente não vem, depois ficam falando mal da gente por aí...
- Concordo Matilde. Esse povo só sabe é se meter na vida dos outros.
- Mas mudando de assunto Izolde... pobre guri né?! Morreu tão novo. Vai ver Deus quis assim mesmo...
- Sim. Deus sabe sempre o que faz. Vai ver estava na hora dele mesmo.
- Pois é, mas não precisava ter sido neste dia tão quente...
- É mesmo. Concordo.
- Ah, tá começando mais um terço..
Ave Maria cheia de graças... Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores e agora e na hora de nossa morte. Amém!
- Nossa, olha o tamanho do vestido daquela ali Matilde. Parece que não se tocou de que está em um velório. Deus me livre.
- É verdade Izolde. Dizem que essa aí vive se assanhando para os vizinhos. Coitado do marido que passa o dia fora trabalhando. Não é à toa que vive caindo de bêbado por aí. Deve ser por causa dos cornos.
- Aham, concordo. Mas parece que ele também não é santo não. Ouvi umas conversas de que ele tem uns casos por fora também.
- Então tá explicado Izolde. Se merecem mesmo! Ah, estão começando mais um terço.
Ave Maria cheia de graças... Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores e agora e na hora de nossa morte. Amém!
- Nossa, olha a carinha dele, parece um anjo dentro do caixão. Quem vê não diz que vivia por aí aprontando e chegando tarde todas as noites.
- Ah é? Ele aprontava Matilde?
- Olha, não tenho certeza, mas sei que sempre chegava tarde da noite em casa. Eu pelo menos nunca vi ele no fim de tarde em casa... vai ver que andava por aí fazendo o que não devia. Sabe né Izolde, Deus sabe o que faz! Que Ele me perdoe por isso, mas não colocaria minha mão no fogo por esse rapaz aí..
- É. A gente sempre erra mesmo. O que não podemos nunca deixar de lado são nossas orações. Ah, e por falar nisso, que terço é esse que estão começando agora?
- Deixa eu ver contar aqui nas bolinhas aqui do rosário.... hummm... é a terceira reza.
- Nossa! A gente fica conversando um pouquinho e até se perde!
- Pois é Matilde. Mas soube da última do Telmo, o vizinho da frente?
- Que comprou um carro novo?
- Isso. Dizem que foi promovido no emprego e tá ganhando mais. Mas olha lá... tenho minhas dúvidas...
- Como assim Matilde?
- Não sei, mas você não acha que juntou dinheiro muito rápido? Pra mim isso está mal explicado!
- Pensando por esse lado...
- Ah, olha lá Izolde, chegou a ex-namorada do coitado!
- É mesmo. Mas não é aquela que largou dele?
- Pois quero lhe dizer que tenho minhas dúvidas. Ouvi dizer que a mãe dele não era muito a favor da relação, e por isso eles disseram para ela que terminaram.
- Ah, por isso então que ele sempre chegava tarde em casa Matilde! Vai ver andava às escondidas com essa aí. Olha só a carinha dela... não parece mesmo ser das mais confiáveis não...
- Por falar nisso, olha lá! Olha a mãe dele e ela, estão uma do lado da outra. Nem parece que não se gostavam...
- E estão cochichando. Parece até que sempre se deram bem...
- Do que será que andam fofocando Izolde?
- Bem que queria saber. Devem estar falando mal de alguém.
- Ou fingindo amizade na frente das pessoas...
- Essa gente não tem mesmo vergonha na cara...
- Aham... Ah,
...cheia de graças... Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores e agora e na hora de nossa morte. Amém!
- Amém!
- E como anda sua família Izolde?
- Ai, meu filho não quer nada com nada... largou dos estudos e não quer trabalhar. Além disso, não pára uma noite em casa vizinha.
- Isso é coisa da adolescência. O segredo é rezar bastante e pedir perdão a Deus. Ele sabe o que faz.
- Sim, é isso que tenho feito Matilde. Estou largando nas mãos de Deus. Deus é bom e vai resolver isso. E como andam as coisas na sua casa vizinha?
- Ah, não te contei?
- O quê?
- Minha filha está grávida. Dois meses.
- Sério? Então vai sair de casa e morar com o pai da criança?
- Não Izolde. O cara foi embora e deixou ela...
- E você vai fazer o que vizinha?
- Ainda não sei...
- O que você acha Izolde?
- Também não sei vizinha, mas reza bastante! Ah, e por falar em rezar, tá começando o sétimo...
- Sétimo... dia?
Não Matilde! Sétimo terço!
- Ah, tá certo...
Ave Maria cheia de graças... Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores e agora e na hora de nossa morte. Amém!


Adriano

domingo, 18 de novembro de 2007

INTRÉPIDA SOPHIA

Ela deixou a órbita
Aquela linha imaginária
Do ali e do além
Do tampouco e do também

Ela perdeu o juízo
Aquela coisa que se tem
Foi maluca foi doente
Foi censura dessa gente que não quer pensar

Ela só ela
Quem ela é?

Ela usou a lógica
Aquela Intrépida Sophia
Do ali e do além
Do tampouco e do também

Ela perdeu o juízo
Aquele velho paradigma
Foi maluca foi doente
Foi censura dessa gente que não quer pensar

Ela só ela
Quem ela é?
Só eu e ela
Quem ela é?

(Tiago Franz - Gaita Negra)

"Proclamarim" a República!


Dezessete de novembro. O feriadão vai acabar. É quase domingo e Sophia se lamenta por não ter lido nada durante a folga. O desânimo aumenta quando pensa no tempo que passou assistindo TV. Que tarde de sábado! Depois do Caldeirão do Huck - mais um carro velho que fica novinho em folha emociona o Brasil -, um filminho pra relaxar - pra variar, uma “nobre” missão norte-americana no Vietnã. Nada disso a agrada, mas a garota é positiva. Sua consciência melhora quando percebe que está sempre a refletir sobre o que vê. Orgulha-se disso. Ainda bem que eu não engulo qualquer coisa. E volta a pensar no que o Prates disse, sexta, no jornal da RBS. Até que ele tinha razão... As pessoas ficam em casa e não sabem nem ao menos o porquê! Sabem que não precisam trabalhar, e mais nada! Dessa vez Sophia teve que concordar com o comentarista – aquele arrogante “moralistazinho” com postura de “sou Deus e estou aqui para julgar os homens”. Pelo menos ele a fez pensar se as pessoas realmente conhecem o significado do feriado que acabaram de passar. Será que as pessoas sabem conjugar o verbo proclamar? Parece ser um verbo regular. República... Nacionalismo... Patriotismo... Soberania nacional... Todos esses “velhos conceitos modernos” voltam a atormentar a cabeça da jovem universitária, que já leu e releu mil coisas a respeito. Esparramada no sofá, com o corpo inerte, na sensação de anestesia geral, Sophia continua seu exercício mental de encontrar algum proveito em tudo que acompanhou pela TV durante seu feriado de ressaca das madrugadas boêmias. Devia ter lido alguma coisa. Que merda! Pelo menos eu pude sair pra beber com o pessoal. Amanhã vou recuperar uma parte do tempo... Agora seus pensamentos são “invadidos” pelo rosto que mais a perseguiu, da tela da televisão, nas últimas horas: Roberto Jefferson. Hummm... Propaganda política partidária em horário nobre... Já perdi a conta de quantas vezes repetiu... Coitado do povo... Pára todas as noites para se deleitar com a novela das oito e ainda é tentado pelo “belo” palavreado do “senhor presidente” do PTB. Ta aí! Outra coisa que talvez noventa por cento desse povo não saiba é que o “T” da sigla do partido não faz mais sentido, e o “B” então... Deixa pra lá. O Getúlio e o Brizola já foram enterrados mais de uma vez! Não se faz mais políticos como antigamente... Pelo menos não no Brasil. Olha só! Não acredito que ele disse aquilo do Evo Morales... Esse índio é um herói!!! Quando foi que ele expulsou os brasileiros da Bolívia? Que calúnia! Só porque alguém finalmente conseguiu enfrentar a exploração abusiva, esse Jefferson vem dizer aí que o Brasil precisa recuperar a “soberania nacional”... Que náusea!!!! E ainda usa Bush e Blair como exemplos... “Eles invadiram o Iraque para conseguir petróleo”. Ou seja, o Brasil precisa invadir a Bolívia e recuperar o Gás, pois o atual governo não está dando a mínima para a “perda” que sofreu. Palhaço! Invadiu minha casa pela TV falando esse monte de bosta. Mas ainda bem que eu não engulo qualquer coisa. Sophia pausa, suspira e cai na gargalhada. Ahahahahahah! Mas o Jornal Nacional deu na cara do Jefferson... Ou será que foi o jornal da Record? Não lembro agora, é tudo parecido... Adorei a matéria... “Milhares de brasileiros atravessam a fronteira com a Bolívia em busca de atendimento de saúde gratuito”. Ahahahahahah! Essa é boa. Não foi esse “miserável país” aí que expulsou o Brasil de suas terras? Que coincidência! Não temos nem o gás, e nem um serviço público de saúde melhor que o dos “vizinhos pobres”. Mas que nada... A copa do mundo é nossa. O circo está garantido para 2014. Viva Morales! Viva viva viva! Ahahahahahah! Dezessete de novembro. O feriadão vai acabar. É quase domingo e Sophia lembra que na segunda, apesar de não ser feriado, comemora-se mais uma data importante para o Brasil: o Dia da Bandeira. Novamente aqueles “velhos conceitos modernos” atormentam sua cabeça, que dói por causa da ressaca e das gargalhadas incontroláveis. Preciso ler alguma coisa. O Hino da Bandeira sempre foi seu favorito. Que melodia! Que glória! Que tudo! “Salve lindo pendão da esperança / Salve símbolo augusto da paz......”

(Tiago Franz - Gaita Negra)


sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Indiscutível autoridade paterna


-Ô Gustavo, é pra levantá que daqui a pouco nós vamo almoçá.
O corpo permanecia imóvel na cama, e o fraco barulho de respiração, quase um ronco inaudível, misturava-se ao som do vento assoviando pelas frestas da veneziana, que impedia a luz de passar. O irmão estava parado na porta, por onde entrava a única claridade que iluminava o quarto e, como Gustavo não se mexeu, aproximou-se e repetiu, cutucando:
- Ô Gustavo. Ô meu, já é onze horas. Levanta que tem que ir almoçá.
Gustavo virou-se de leve para o lado, e abriu os olhos devagar. Afastou os cabelos do rosto e esfregou as pálpebras com os punhos, já que a visão estava embaçada. Na boca, o gosto seco e amargo de quem acabou de acordar, e o corpo, sem vontade, contrariava qualquer tentativa de levantar-se.
- Que horas são? – perguntou, coçando o saco com uma das mãos, e com a outra tateando o bidê em busca do relógio.
- Onze horas meu. O pai pediu pra levantá que hoje nós vamo almoçá fora.
- Ai que saco.
O quarto cheirava a suor. Nessas madrugadas quentes nem que dormisse nu e com a janela aberta e ventilador ligado conseguia impedir a transpiração. Precisava de um banho. A contragosto, levantou, escovou os dentes e entrou embaixo do chuveiro, deixando a água gelada despertar-lhe de imediato e lavar-lhe a pele salgada.
Nesta manhã sentia-se muito melhor do que em todas as outras manhãs da última semana, em que acordara com fortes ressacas resultantes das displicências noturnas. Enquanto vestia-se, orgulhou-se de ter permanecido em casa na noite anterior lendo um livro, ao invés de ir encher a cara, como estava acostumado. Certamente, a recompensa veio no dia seguinte, quando pôde ir ao banheiro escovar os dentes pacientemente, e não precisou abraçar-se ao vaso para vomitar. E, passando a língua pela boca, pôde, com prazer, constatar que não sentia a corriqueira mistura de gosto etílico ao amargo de vômito.
Quando caminhava em direção à cozinha para tomar um copo de água, passou em frente à porta do escritório onde seu pai trabalhava. Porra, em pleno sábado! Este era um serviço extra. O pai era bancário durante o dia, mas durante a noite e aos fins de semana exercia as atividades de contador para ganhar um dinheirinho a mais e para não ficar com a mente vazia. “Mente parada só pensa besteira”, dizia o pai, para justificar o excesso de serviço que assumia.
Ao passar pela porta do escritório, que estava aberta, o pai apenas olhou por cima do ombro e imediatamente chamou:
- Gustavo.
- Sim?
- Tu vai almoçar com a gente? – perguntou, retornando os olhos para os papéis e calculadora.
- Ué, não foi por isso que me acordaram?
- Então o senhor vai trocar essas meias.
- Quê?
O pai parou de calcular, olhou para trás novamente, e repetiu.
- Se quiser almoçar conosco, vai trocar essas meias.
Gustavo olhou para os pés, sem entender. O par de meias vermelhas com listras pretas era um de seus favoritos. Mas, conhecendo o pai de longa data, sabia que não adiantava discutir, que era só para se incomodar. No mínimo ele achou minhas meias extravagantes demais. Imaginem só, o que as pessoas vão pensar se o filho do Leovandro aparecer vestido assim no restaurante! Vai ser um escândalo!
Preferiu guardar suas ironias para si. Não quis arranjar confusão logo pela manhã. Mas foi preciso muito esforço, pois aquelas mesquinharias todas do pai sempre lhe deixavam doido da vida. Implicar com minhas meias, veja só! Será que não tem nada melhor pra se preocupar?
Dirigiu-se à cozinha e encheu um copo com água. Enquanto bebia, a mente divagava a respeito de coisas que estavam lhe perturbando: trabalhos da faculdade atrasados, o emprego excessivamente burocrático no banco que o deixava insatisfeito, a namorada que lhe prendia em amarras sentimentais e o isolava do mundo, além de outras coisas que costumam incomodar um jovem de classe média. Seu devaneio foi interrompido quando percebeu o reflexo do próprio rosto no vidro da janela da cozinha. Um rosto horrível. Meu deus, preciso cortar esses cabelos. E essas espinhas, que merda. E é melhor ir fazer essa barba. Merda. Eu, só nascendo de novo.
Na verdade, as preocupações com a aparência eram um jeito de findar com todas as outras preocupações existenciais que sempre lhe enchiam o saco. Andava de um lado para o outro pensando no porque disso e daquilo, e, quando o cérebro começava a sentir-se esgotado, como se por uma autodefesa, fazia-lhe contemplar a própria imagem e devolvia-lhe, assim, uma enigmática resposta para tudo. Um sentido.
Serviu mais água no copo e voltou a beber. O pai entrou na cozinha, apressado, fechando as janelas da casa. Olhou para Gustavo de cima a baixo, e disse:
- Vai trocar essas meias.
Gustavo não respondeu. Aparentando paciência, tomou vagarosamente a água do copo. Perdeu-se em devaneios por mais alguns minutos. O pai, tendo acabado de fechar todas as janelas do primeiro andar, voltou à cozinha:
- Tá dormindo ainda? – disse, dando-lhe um tapa nas costas - Acorda, ninguém quer ficar te esperando, estamos com fome. E vai trocar as meias.
O pai saiu e subiu as escadas para fechar as janelas no andar de cima. Essa era realmente uma característica de Gustavo: perder-se em pensamentos. Mas apenas uma característica, não sabia dizer se era um defeito ou uma virtude, estava apenas consciente de ser assim. Muitas vezes isso lhe causava sérios problemas. Quando estava tomando banho, desligava-se do mundo e passava trinta ou quarenta ou cinqüenta minutos embaixo do chuveiro, divagando, pensando, e o pai, raivoso, sempre batia na porta com força e berrava:
- Vamos sair desse banho! Tá achando que eu sou teu escravo!? Não é a toa que a conta de água e de luz sempre tão nas alturas! Vou começar a te fazer pagar!
Quando estava no serviço – era caixa de banco – atendendo aos clientes da sempre extensa fila, por vezes ouvia algum comentário ou presenciava alguma cena que lhe fazia pensar, e desligava-se. Passava a atender as pessoas automaticamente, mas estava com a cabeça em outro lugar. Freqüentemente, isso significava problemas para fechar o caixa no fim do dia, e lá ia Gustavo, tirar um pouco do seu salário para cobrir o furo.
Apesar disso, mesmo sabendo de todos os problemas que “desligar-se” pode causar, não conseguia ser diferente. Acho que tenho alguma disfunção, sei lá, algum problema em prestar atenção nas coisas ao meu redor. E os amigos sempre falavam: Não sei como o Gustavo pode ser tão distraído, está sempre longe, viajando.
Tão isso tudo é verdade que estava no banheiro, barbeando-se, e parou-se para perguntar a si mesmo: nossa, como vim parar aqui? Chegou lá sem perceber, distraído que estava. Nem notou que o pai passou pela porta do quarto e lhe repetiu para que trocasse as meias. Não notou também quando passou o creme de barbear no rosto e quando começou passar a gilete. Nada disso. Só notou quando a dor de um corte sob o nariz lhe fez despertar. Um veio de sangue começou a escorrer devagar, manchando de rosa a branca espuma do creme. E resolveu prestar mais atenção no que estava fazendo.
Ouviu um barulho de buzina. O pai e o irmão já estavam no carro lhe esperando para partir ao encontro da mãe no restaurante. A buzina soou novamente: estavam impacientes. Pegou um pedaço de papel higiênico para cobrir o corte e desceu as escadas correndo. Quando entrou no carro, o pai olhou seus pés:
- Eu não mandei trocar as meias? Tu tá me desafiando?
- Ah, eu esqueci.
- Não me desafie, piá, não me desafie.
Gustavo não estava mentindo. Havia realmente esquecido de trocar as meias. Porra, eu tenho coisas tão mais importantes pra me preocupar! Odiava ser tratado daquele jeito autoritário e, apesar de estar acostumado com a prepotência do pai, não conseguia deixar de sentir raiva.
Trocou as meias e voltou para o carro. O pai deu a partida e, enquanto tirava o carro de ré da garagem, foi dizendo, o rosto vermelho:
- Tu sabe que eu não gosto que me desafiem!
- Eu esqueci. Foi sem querer.
- Tá sempre no mundo da lua. Sempre viajando. Quando vai acordar pra vida, meu filho? Olha as meias que tu tava usando.
- Ah pai, pelo amor de deus.
- Que foi? Vai me desafiar?
O pai cutucava demais, aquele petulante. Gustavo irritou-se:
- Ora, não era você que não queria ficar com a mente vazia? Acho que anda te ocupando com as coisas erradas, porque não está enchendo com nada isso daí – disse, cutucando com o nó dos dedos o crânio do pai.
- O quê? – vociferou o pai, rosto vermelho.
- Desse jeito, reparando na roupa dos outros, já começou mal...
- Quê? Olha a boca!
- Não tem nada melhor pra se importar?
Gustavo perdia cada vez mais o controle da situação, e sabia disto, pois via o pai ficar cada vez mais vermelho de raiva, segurando-se para não lhe desferir um tapa, e cuspindo cada vez mais enquanto falava. Começaram a discutir desordenadamente, tornando a conversa ininteligível para o irmão, que acompanhava assustado àquilo tudo.
- Não gosta de ser criticado, não é? Tudo isto é inteligência? – continuou Gustavo, com ironia na voz.
- Tu te cuida!
- Esta prepotência toda, esta vontade de ser o mandão, o dono da verdade, essa é a tua inteligência? tua mente ocupada?
Um barulho surdo e depois silêncio. O pai respirava ofegante, e Gustavo estava atônito congelado com a boca aberta, pronta para pronunciar uma palavra que fora silenciada pela agressão. Não acreditava que, aos vinte anos, ainda poderia apanhar do pai. Ficou com vontade de pegar o homem pelo pescoço, esganá-lo, esbofeteá-lo, recuperar seu orgulho perdido. Mas desistiu. Ainda dependia do pai, sob vários aspectos, e permaneceu submisso.
- Na volta vamos ter uma conversa séria.
Gustavo concordou com a cabeça. O rosto ainda pulsava no lugar onde fora atingido. O irmão estava assustado.
Ao chegar no restaurante, foi em direção ao banheiro sem perceber, mas apenas para cumprir o protocolo de lavar as mãos antes de comer. Novamente, despertou com sua imagem no espelho. Um rosto horrível. Meu deus, preciso cortar esses cabelos. E essas espinhas, que merda. Caralho, olha essa mancha na cara... todo mundo vai sacar que eu apanhei do velho. Merda.
Eu, só nascendo de novo.
E em outra família.


Matte



terça-feira, 13 de novembro de 2007

Na “Ilha das Flores”, o tomate não pode ser Furtado

A história didática e não-ficcional, retratada no curta “Ilha das Flores”, poderia ser engraçada, se não fossem as cenas finais que levam à reflexão do quanto somos mesquinhos ao deixarmos que seres humanos com telencéfalos altamente desenvolvidos e com polegares opositores comam a comida dispensada pelos porcos.
Espera aí! Contei o final do filme, que droga! Aí está um grande motivo para não assistí-lo, não é? Poiseu te respondo: não. Jorge Furtado, esqueci de dizer, é o diretor do curta-metragem e representa muito bem em pouco mais de 13 minutos o que muitos tentam a vida toda: como a sociedade pode ser realmente descompromissada com a causa social e como nossa mente está tão acostumada a assimilar o texto e a imagem como coisas diferentes, que, quando Furtado complementa um como o outro, requerem de nós um tremendo esforço para assimilar os fatos apresentados assistindo apenas uma vez.Mas o que tem de tão especial, fantástico, aterrador e reflexivo neste curta? Um tomate. Isto mesmo, um pequeno e indefeso tomate que tem sua vida privada violada por um depravado diretor com uma câmara na mão. A trajetória do tomate começa na plantação do senhor Suzuki, passando a ser adquirido pela vendedora de perfumes, dona Anete, que prepara um delicioso molho de tomates para acompanhar a carne de porco que sua família faminta devora em poucos takes. Os tomates podres são jogados no lixeiro pela dona Anete e vão parar na Ilha das Flores, um depósito de lixo no qual vivem famílias e criação de porcos. Os tomates não comidos pelos porcos são dados às famílias pobres que residem lá (ou deveria dizer, que sobrevivem lá), e o final eu já contei para vocês, caros amigos.Jorge Furtado é brilhante ao casar a imagem com o off, pois muitas vezes eles não são simplesmente uma complementação do outro, mas o inverso que provoca a reflexãosobre se realmente as coisas ditas pelo narrador – que tanto conhecemos do colégio ou mesmo da universidade – são realmente verdadeiros. Neste aspecto, o curta mostra uma série de acontecimentos que expressam contradição entre o ensino e a realidade.Quando o narrador fala dos tomates e dos porcos, cita que os judeus não comem carne de porco. Nesta hora, enquanto o narrador fala que eles também são seres humanos, vão passando imagens do holocausto nazista na Segunda Guerra para ilustrar que eles foram tratados com extrema crueldade e desumanidade, mesmo tendo telencéfalos altamente desenvolvidos e polegar opositor.Outro exemplo mostrado é a capacidade do homem de utilizar seu potencial mental (através do telencéfalo altamente desenvolvido) com a utilização física (polegar opositor) para... o narrador faz uma pausa e aparece o cogumelo de fumaça de uma dasduas bombas nucleares explodidas pelos Estados Unidos contra o Japão (o país de origem do senhor Suzuki, o plantador de tomates) ...plantar tomates. Neste caso a pausa e a explosão serviram para mostrar que o homem, que se julga o mais inteligente dos seres da criação, pode e continua a fazer cagadas antológicas, mesmo com um telencéfalo altamente desenvolvido. Apesar do nome, nem tudo neste filme são “flores”. O diretor utiliza um humor ácido e sarcástico para mostrar a dura realidade de milhares de famílias que vivem em condições piores que a dos porcos daquela ilha. Em meio à pilha de lixo que é depositada lá diariamente, encontraram uma prova de história de uma garotinha de classe média. Furtado insinua que alguns produtos orgânicos como tomates e provas de história são dados para os porcos comerem, fazendo alusão ao pedaço de papel encontrado no lixo. Talvez se os conhecimentos de história fossem guardados nos telencéfalos altamente desenvolvidos e não em pedaços de papel, não teríamos tantos problemas sociais como temos hoje.Mas, enquanto isso não acontece, provavelmente este pedaço de papel vai acabar embrulhando algum pedaço de comida podre em alguma Ilha das Flores qualquer.

Carlos Dori

domingo, 11 de novembro de 2007

Os cavaleiros do “Caminho da Roça”

Hoje é domingo, mais um dia de batalha. Como sempre, alguém sairá vitorioso e conquistará a mais bela entre as dezenas de donzelas e, certamente, a levará para passear em um lugar mágico no qual novas vidas podem ser criadas. As donzelas também travam belas disputas, cada uma com seu traje que julgam ser o mais adequado. Algumas usam uma espécie de pó sobre os olhos e uns trajes que, segundo as ninfetas, ajudam na conquista de espaço no cavalo dos guerreiros. Já os guerreiros, cavaleiros, batalham a semana toda, mas têm suas recompensas nos momentos de lazer. Esses momentos são frutos de muitas economias, pois no Reino de Caminho da Roça os salários não são tão altos assim.
Muitos desses cavaleiros sequer possuem casa fixa, estudo ou muito conhecimento. No Reino do Caminho da Roça isso não é muito importante. Esses cavaleiros possuem os mais belos trajes e os mais belos cavalos, que os ajudam no crescimento pessoal e na conquista de diversos bens importantes, como a fama e principalmente muitas das mais belas donzelas. As demais posses são secundárias e o que importa é o momento, já que no dia seguinte tudo começa novamente. A idade avançada não parece ser problema. Isso porque essas batalhas entre os mais belos e fortes cavalos não são apenas travadas entre jovens. Não é raro ver cavaleiros mais experientes lutando na conquista das jovens donzelas e na marcação de seu território através dos relinchos de seus cavalos. No Reino do Caminho da Roça, alguns cavalos são mais importantes do que a vida de diversas pessoas.
Neste reino, a honra de ter o cavalo mais forte e mais preparado vale um duelo de demonstração do poder, garantindo uma reputação para impressionar as donzelas e criar inveja e respeito aos que não têm cavalo. Este ritual de adoração aos cavalos faz com que hajam seguidos desafios entre os guerreiros. O ritual de disputa é muito interessante, valendo a pena ser citado:
– Os cavaleiros se encontram no campo de batalha. A honra está em jogo. Afinal, os cavaleiros precisam mostrar o vigor de seus cavalos alados. É uma batalha que não podem perder, pois cada cavalo alado, com suas armaduras reluzentes, suas patas lustrosas e imponentes, comprovam o quanto estão bem cuidados e são predominantes no reino de “Caminho da Roça”. Cuidado este que, em outros tempos, eram para preservação do animal e não uma simples vaidade de seus cavaleiros. Qualquer lugar ou dia é hora para duelar. A plebe, atônita, acompanha cada minutos com um fascínio típico dos grandes espetáculos. Panes et circencis, ou melhor, pão e circo!
O infeliz bobo da corte, com suas roupas alegres, última moda num reino materialista e distante, chapéu com guiso, olhos tristes e cansados, com sonhos tão simples e superficiais, caminha – sempre pensando: “Ah, quem me dera ser um destes cavaleiros! Possuir um belo cavalo e conquistar as mais belas donzelas” – lentamente em direção ao centro do campo de batalha. Portando em suas mãos uma bandeira vermelha, prepara-se para ter seus dois segundos de fama, que assegurarão bom sonhos – que nunca se concretizarão – mais tarde. Empunha a bandeira bem acima da cabeça e, num gesto rápido abaixa sua tola arma. Cavalos disparam sob o comando seguro de seu cavaleiro pela grande pista, dividida por um belo canteiro central e diversos sinais que podem ser entendidos mas não obedecidos pelos donos dos cavalos. As donzelas levianas acenam seus lenços, decotes e outros acessórios – antes não permitidos por seus pais, mas agora usados a fim de obter a atenção, garantindo assim, um confortável e luxuoso palácio situado no centro de “Caminho da Roça”: lar de egocêntricos cavaleiros materialistas.








Adriano / Carlos

Por detrás dos olhos

Atrás do verde
A escuridão
Atrás da nobreza
A população.
Plantação ao lado
Da selva de pedra
Indivíduo mudo
Perdido no escuro.
Ferramenta na mão
Avião no céu
País em construção
Bombas ao véu.
Tristeza no rosto
É claro o desgosto
Da vida banal
No país do carnaval.


Adriano