quinta-feira, 9 de outubro de 2008

DECLARAÇÃO DE POSTURA POLÍTICO-IDEOLÓGICA SEGUIDA DE DESABAFO AUTO-BIOGRÁFICO DO SUJEITO CIDADÃO


Texto escrito no curso de jornalismo para o professor Érico Assis, que só dá trabalhos legais.


Eu, Tiago Luiz Franz, brasileiro, solteiro, portador do RG xxxxxxx-x e CPF xxx.xxx.xxx-xx, residente na Rua Xxxx Xxxxxxxx XXXx, Bairro Xxxxxx Xxxxxxx, Chapecó – SC, matriculado na Unochapecó sob o nº xxxxxxxxx, declaro para fins acadêmicos manter posicionamento político-ideológico de orientação à esquerda, bem como praticar a apologia de tais ideais. Mas, como este artigo não precisa ser protocolado em nenhuma jurisdição ou instância burocrática institucional, o cidadão aqui vai ser mais agradável em suas verbalizações.


Sempre quis ser independente. A liberdade é algo bom de se querer e lindo de se defender. Sempre quis fazer o que gosto e acredito ser bom. Uma bela e digna profissão me cairia muito bem. Sempre gostei de boa e farta comida. Saúde em primeiro lugar, seguida de uma educação de qualidade e doses moderadas de um lazer saudável são fundamentais. Para completar, nada como alguns bens materiais para satisfazer os eventuais desejos. Eis a receita que me ensinaram para a tal felicidade.


Era eu um pequeno ser vivente quando o “cara de vestido” derramou aquela coisa benta com uma caneca na minha frágil moleira. Foi tudo registrado. Eu era civil e cristão. Hoje sou só civil, pois dispensei a carreira militar aos dezoito e desisti do paraíso mais ou menos na mesma época. Oito anos depois de vir ao mundo, mais quatro descendentes da mesma prole se sentavam ao meu lado na mesa. Tirando as brigas entre irmãos e desobediências aos pais eu fui um bom cristão. Jesus ouviu as minhas preces e não me deixou faltar o essencial. Santa Claus até me trouxe uns presentes legais. Fiquei rapazinho e algumas mocinhas me quiseram. Tive uma banda adolescente que fez sucesso na escola e vendeu 200 CDs em uma cidade de 20 mil habitantes. Entrei pra universidade e cá estou a me posicionar político-ideologicamente.


Nasci no Estado de Santa Catarina, mas cresci no Estado do Mato Grosso, que é o órgão emissor do meu registro de identidade supracitado. Estado, neste caso, é uma Unidade da Federação. A Federação em questão é denominada Brasil e é a mesma que determina a nacionalidade deste cidadão que voz escreve e que aos quatro anos de idade viu - e jura que lembra disso, mesmo que não entendesse o que significava - Fernando Collor vencer Luiz Inácio no segundo turno. O cara “mais bonito esteticamente por fora” passou a usar a faixa de presidente da Federação. Eu estava no Mato Grosso e as ruas estavam cobertas de papel de campanha. Por lá, o cara de barba não é muito bem quisto até hoje, e eu fui compreender melhor o porquê quando já era bem grandinho.


Além de cristão, o discurso que me educou e me mostrou a receita da felicidade também me foi apresentado mais tarde como sendo conservador, neoliberal, latifundiário e adepto do agronegócio, ou seja, de extrema direita. Essa era minha lente cultural que dava valor as coisas do mundo e que originava a minha antipatia ao barbudo. Mas eu só fui saber disso mais tarde, quando minha lente se quebrou e me emprestaram uma nova. Isso foi na universidade.


Com a nova lente eu passei a ver um mundo diferente. Percebi mais elementos que mereciam ser observados. O antidiscurso me fez rever a receita. Eu quis experimentar novos ingredientes para incrementar a tal felicidade. É verdade que eu já questionava a receita antiga desde cedo, mas eu passei a alimentar mais alguns sentimentos. A independência e a liberdade foram totalmente relativizadas conforme eu tive que lidar com a vida em grupo. O convívio me ensinou que não se faz quase nada para si sem interferir na vida dos outros. Muito do que eu gostava e achava bom passou para o lado das coisas ruins, e vice-versa. Percebi que eu comia pior do que muitos e melhor do que muitos mais ainda. Notei que minha saúde, educação e lazer dependiam do esforço dos meus pais e que as outras crianças nem sempre tinham pais como os meus, se é que tinham. Para completar, descobri a diferença entre desejo e necessidade material.


Sou de classe média. Um privilegiado e frustrado ao mesmo tempo. Tive e não tive, mas o verbo que me motiva hoje é outro: ser. Quero antes ser, não mais do que ninguém, nem menos, para depois ter. “Estou” de esquerda. Obrigo-me a reconhecer o Estado, com todas as suas instâncias. Ainda não sei de que outra forma seria possível administrar pessoas cheias de desejos e necessidades num espaço de terra. Não acredito que a liberdade econômica vá atender às necessidades das pessoas. Talvez atenda aos desejos, e mesmo assim, de somente alguns poucos. Apesar de conhecer as duas lentes, os olhos são os mesmos. Nunca saí de meu lugar relativamente privilegiado.



tiagofranz

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Amarelo


Aquele amarelo já me dava náuseas. A cor da lotação cheia de gente que não pára de balançar e a cor da sacola do cobrador, que insiste em ouvir em alto e bom som uma seleção de canções dos anos 80, que, por sinal, eu odeio. Amarelo também é a cor da blusa da mulher parada na minha frente, escorada no ferro amarelo da lotação, cantando, em enrolês, a música chata que vinha do celular guardado dentro da bolsa amarela do “auxiliar de bordo”. Consigo até imaginar um clipe à la YMCA: de repente, todo mundo se levanta dos bancos e saí pelo corredor do ônibus dançando uma coreografia sincronizada e cheia de piruetas. O cobrador faz a frente e a mulher de amarelo canta. Convenhamos, tem coisa mais chata que coreografia sincronizada em clipe dos anos 80?
Amarelas também são as caras de quem trabalhou o dia todo e agora vai pra casa, sacolejando no ônibus e contando, com sua voz metálica e amarela de cansaço, os detalhes do seu dia, da vida dos vizinhos, do marido que perdeu o emprego, da filha que mora fora da cidade… bzzzbzzzzbzzzzbzzzz, o zumbido das conversas (des)importantes; dos papos e risadas dos garotos e garotas que saíram da faculdade; dos discursos sobre futebol, política, educação ou qualquer coisa que agora não me importa.
Alguém puxa a cordinha e, ufa!, um pouco de vermelho quebra o amarelo e um biiiiip chato (não tão chato quanto o resto dos barulhos) indica que alguém vai descer na próxima parada. Mas bem que esse poderia ser o sinal para indicar “emergência”, como se dissesse: “por favor, acabemos com esse caos! Agora, calem a boca, desliguem a música, fiquem parados. Chega, por favor!”. Infelizmente, o vermelho diz para o motorista que ele deve frear bruscamente para parar no sinal que acabou de fechar e, com isso, prolongar a minha angústia amarela. O Princípio da Inércia, primeira lei de Newton, explica porque as minhas coisas, as coisas das outras pessoas e, inclusive nós (eu e os outros) continuamos em movimento e batemos uns nos outros. Amarelo de raiva.
Verde no sinal e agora só falta mais um pouco… Vermelho, biiiiiiip. Até que enfim, cheguei. Desço do ônibus e entro em casa sem nem olhar pra trás pra ver o amarelo se afastando e me despedir pensando: “até amanhã, bem cedo, logo depois que o amarelo do sol me acordar.”


suzi.

domingo, 3 de agosto de 2008

“PODE PASSAR, A ENTRADA É FRANCA!”

Dava pra ver de longe que algo havia ocorrido Eram 8h05 de uma segunda-feira de céu cinza e ar abafado. Antônio ia a pé ao trabalho quando se deparou com a cena do acidente. No meio a outras centenas de curiosos que se aglomeraram para assistir o espetáculo de entrada franca, Antônio também parou e se posicionou em um dos cantos do circo a céu aberto e vigiava cada movimento do público presente que se deliciava com a agonia da tragédia.
Naquela manhã acordara cedo com o intuito de evitar o desaforo de pegar o ônibus lotado logo no primeiro dia de trabalho da semana. Aquilo o sufocava. O ar rarefeito dentro do veículo, o empurra-empurra e o balanço descompassado o deixavam de mau-humor. Resolveu então sair antes, passou na padaria perto de casa, tomou um café amargo e comeu um pastel que pingava o óleo da fritura. Caminhava com certa pressa. Seu ponto de entrada era às 8h15. Porém, o acontecimento era grandioso e o misto de curiosidade e emoção o deteve.
Ao seu lado se encontrava uma senhora com uma criança ao colo, na frente um rapaz bem vestido, e atrás um conhecido do condomínio onde Antônio trabalhava. “Que acidente incrível, né Toni? Olha como ficaram as crianças”, comentou com entusiasmo o cara cercado por pessoas das mais diferentes descrições, todas hipnotizadas pelo fato. “É tão emocionante um acidente de verdade. Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre*”, pensou em voz alta sem perceber. Nisso, um senhor de idade avançada, logo à frente, o olhou de cara feia como se o reprimisse.
A cada visão panorâmica Antônio percebia que a multidão aumentava, o que dificultava o trânsito no local e fazia com que a polícia construísse um cordão de isolamento. Certamente o fato seria o comentário da semana na cidade, e disso ele teve certeza quando notou a chegada da imprensa. Vinham como corvos ao avistar o alimento em putrificação. Tomaram conta do ambiente, eram soberanos. Aquilo causou inveja na maioria das pessoas afastadas pelo policiamento e que passaram a observar tudo à distância, incluindo Antônio.
O homem então começou a prestar atenção nos repórteres que se debatiam pelo melhor ângulo, pelo melhor depoimento. Fotógrafos e cinegrafistas se deliciavam registrando cada passo do resgate, os danos do acidente, o saldo de feridos e mortos. A repórter da TV tomava o relato da mãe de uma das vítimas que acabara de chegar ao local. Aos prantos ela falava e chorava em frente à câmara, bombardeada por perguntas. “Será um prato cheio para a hora do almoço”, pensou ele se referindo aos telejornais que dominavam o horário do meio-dia. Sentiu náuseas. Virou as costas e seguiu de maneira atrasada ao emprego. Era forte o cheiro do sangue fresco e amargo que continuava escorrendo sobre o asfalto quente daquele início de semana trágico e divertido.

*Metrópole – Legião Urbana
ingorock

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Os funerais da ideologia partidária

ilustração: http://www.tre-ms.gov.br (TRE/MS)

Tiago Franz / Artigo / Política

Em 27 de outubro de 1965, a ditadura militar extinguiu o pluripartidarismo no Brasil e instaurou o bipartidarismo, através do Ato Institucional nº2 (AI-2). Assim nasceram a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro). O primeiro era extremamente conservador e foi criado para apoiar o regime. O segundo era o partido opositor, de centro-esquerda, que reuniu correntes democráticas, trabalhistas, socialistas e comunistas. Somente no governo Geisel o MDB obteve maior expressão e conquistou de volta o pluripartidarismo e em 1980 deu origem ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que manteve-se no centro. Enquanto isso, a Arena passava a ser o Partido Democrático Social (PDS), tão à direita quanto seu antecessor.

A partir daí ocorreram inúmeras cisões, incorporações e fusões, de ambos os lados, além da fundação de partidos novos, como o Partido dos Trabalhadores (PT), até chegar-se ao cenário atual. O que se observa hoje é uma verdadeira “salada mista”. É a morte definitiva da ideologia partidária – ideologia enquanto conjunto de doutrinas e visões de mundo que orientam social e politicamente. Percebe-se nitidamente, com a movimentação dos partidos, principalmente em nível estadual e municipal em Santa Catarina e no país, que há muito poucos critérios para a formação de alianças. Nem mesmo a oposição entre partidos em esfera nacional impede que eles sejam aliados em alguns Estados e municípios. O que decide a formação das coligações nos colegiados menores são, quase sempre, circunstâncias locais, como as relações entre grupos dominantes, oligarquias, classes e pessoas influentes.

Essa movimentação reflete um aparelhamento cada vez mais acentuado dos partidos na prática da gestão pública, bem como nos processos eleitorais. É preciso um alto grau de informação para compreender o cenário e manter uma opinião consistente, além do senso comum, a respeito da conjuntura política do Brasil. Não é a toa que, nas eleições de 2006, pesquisas de opinião pública revelaram que mais de 50% da população estaria desacreditada da classe política. Muitos brasileiros afirmam fazer pouca ou quase nenhuma distinção entre as propagandas eleitorais veiculadas pela mídia.

Em Santa Catarina as oligarquias sempre dominaram, expõe o cientista político e professor da Universidade do Vale do Itajaí Julian Borba, em artigo publicado em 2003*. O principal grupo dominante é o dos Konder Bornhausen, da Arena, depois PDS. Os Bornhausen fundaram o Partido da Frente Liberal (PFL) no Estado, hoje Democratas (DEM), numa cisão nacional do PDS que mais tarde também deu origem ao Partido Progressista Reformador (PPR), depois Partido Progressista Brasileiro (PPB) e atualmente Partido Progressista (PP), liderado em Santa Catarina por Esperidião Amin. Essas foram as duas maiores correntes de direita no Estado a partir da reinstauração do pluripartidarismo e da reabertura política. Em alguns momentos, Amin e os Bornhausen tiveram que se juntar para combater a oposição de maior representatividade: o “herdeiro do MDB”, o PMDB, que ganhava força nacionalmente devido ao sucesso inicial do Plano Cruzado. Na conclusão, Borba visualizou como principal tendência o crescimento do PT, que em 2003 chegou à Presidência da República e atualmente está entre as principais forças do Estado.

Os caminhos que os partidos percorrem, cheios de encontros e desencontros, são mesmo os mais improváveis. Cada caso precisa ser analisado separadamente. Nas eleições para o governo de Santa Catarina em 2006 formaram-se duas forças coligadas. Foi uma total inversão de lugares em relação às origens, do tempo do bipartidarismo. O PMDB elegeu Luiz Henrique da Silveira (LHS), apoiado pelo PFL e pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Esta é a chamada “Tríplice Aliança” do Estado, que lidera a centro-direita. Dos três, somente o DEM originou-se da Arena. O PSDB é resultado de uma cisão de dissidentes paulistas do PMDB, ocorrida em 1988, e desde então o partido tende para a direita. O PMDB manteve-se no centro. Já Amin disputou o primeiro e o segundo turno da eleição de 2006 com LHS, pelo PP. No segundo turno foi apoiado por José Fritsch, do PT, que havia ficado em terceiro lugar no primeiro turno, formando assim a segunda força política do estado nesse pleito. Os progressistas, nascidos do extremo conservadorismo, aliaram-se com os petistas, oriundos do sindicalismo dos anos de repressão.
O mês de outubro se aproxima e novamente os partidos se embaralham numa confusão de siglas, a fim de disputar as eleições municipais. Não foi só a ideologia que morreu. Muitos conceitos políticos, como “democracia”, “trabalhismo” e outros foram brutalmente assassinados pelo pragmatismo. Duas das siglas mais recentes do Brasil utilizam os mesmos nomes dos dois partidos estadunidenses: o Democratas (DEM) e o Partido da República (PR), que corresponde aos Republicanos/EUA. Conceitualmente, as palavras perderam todo o seu valor, já que na prática elas não são aplicadas e, muitas vezes, reverberam das bocas demagogas para os ouvidos alienados, num vai-e-vem cansativo como reza de funeral.

*BORBA, Julian. Eleições em Santa Catarina: história e perspectivas. In: HASS, Mônica (org.). Partidos políticos, eleições e voto: comportamento político-eleitoral de Santa Catarina. Chapecó: Argos: 2003.

terça-feira, 10 de junho de 2008

A DOIS

Deixe-me uma lembrança de seu amor. Tentei te dar a felicidade que faltava e não tive êxito. Não esqueça de deixar-me pelo menos uma lembrança.



Acordei e vi que casa estava toda por arrumar. Espalhada por entre as paredes ainda encontrava a lembrança de seus passos que eu seguia para satisfazer minha alma. Agora caminho sozinho, no entanto, não consigo me convencer de que isso seja realmente o melhor para mim. Não me importo, apenas sigo.

Espada na mão, armadura vestida, posição de batalha. Amanhã é outro dia e a luta terá um novo capítulo. Melhor seria a dois.


ingo

POESIA

luz do banheiro queimada, dia agitado, cheiro de suor em minhas roupas e um bafo quente em meu tênis; puro cansaço, calos nos pés, dor de cabeça e vontade de usar o meu pênis. Que abobado!, trocadilhos tacanhos, sujo e esgotado que estou, preciso de um banho – conforto luxuoso que me concedo.
Deitar, acordar cedo.

Cemate

sábado, 10 de maio de 2008

VIDA BLUE


assista o curta no Youtube:
http://youtube.com/watch?v=pQaa0lZ5fmM


blues; isolamento; cidade; rotina; comunicação...

Notas profundas ecoam entre os prédios na madrugada silenciosa. É o blues chorado ao violão por um homem solitário. A rotina do trabalho mecânico o atormenta. Durante o dia mergulha em preocupações. Tudo nas pessoas lhe é estranho. Precisa dizer algo a alguém, e quando encontra esse alguém, não o vê, mas o ouve. Utilizam a mesma linguagem: a música. O mesmo lamento: o blues. Do meio dos prédios e ruas que dormem, o som de uma gaita de boca se faz ouvir distante. Violão e gaita improvisam arranjos como num diálogo. Existe harmonia. Existe comunicação. Existe vida semelhante a do homem solitário na “cidade máquina”.












Gaita Negra Man

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Conto sem título de uma história sem importância


Aos 11 anos, mesmo sem conhecer Baudelaire, M. já havia flertado com as sensações de variados e baratos paraísos artificiais. Sem hipocrisia poética, preferia a fantasia à realidade. Era analfabeto e morava na rua. O mundo real era impiedoso, duro, faminto... precisava de qualquer alívio imediato para amenizar as dores do corpo e da alma. Transcendia sua mente a muitos lugares, mas o preferido era o jardim florido, onde o sol brilhava sempre e aquecia-o enquanto seus pés enterravam-se maciamente na terra úmida. Ali deitado, passeando os olhos de pupilas dilatadas pela suavidade azul de um céu de poucas nuvens, quase esquecia-se da laje de concreto fria – ao mesmo tempo seu travesseiro e cama - e da brisa gelada do inverno a arrepiar-lhe as canelas.
Desde cedo aprendeu a usar sua imaginação fértil. Esta capacidade bem desenvolvida servia como proteção a um mundo insistente em não notar sua existência. Às vezes até funcionava bem. Quase podia sentir o sabor dos almoços fartos e caros enquanto observava através dos vidros dos carrões o desfile dos mais abastados de Cidade Imóvel – que não eram muitos, mas suficientes.
Considerava-se sortudo, pois quando cansava de perambular como fantasma pelas ruas e avenidas movimentadas do progressista lugar tinha um trunfo. A catedral da igreja era admirada religiosamente devido à sua beleza arquitetônica, cravejada de vitrais e ouro. Imponente e poderosa, como um deus furioso sentado em seu trono eterno pronto para punir. Já que o padre da cidade era seu amigo, deixava-o passar o tempo que quisesse na torre do sino, a mais alta da cidade. De lugares altos como este podia sussurar seus sonhos ao pé do ouvido das estrelas. Tinham a ver com comida e abraços quentes. M. gostava mesmo de subir no telhado da torre, pois assim ficava escondido. A amizade com o padre havia ficado estranha desde aquela noite chuvosa quando o sacerdote, com o olhar de um lobo, enfiou a mão dentro do seu calção. Não ia mais até a entrada da igreja nos dias de missa, percebendo aquele mesmo olhar enquanto ouvia o sermão do lobo para a multidão. Ironicamente ele as chamava ovelhas de deus.
Intervalo para o almoço.
Garfo e faca tilintam no prato. A gordura no canto da boca brilha enquanto um suculento e gordo pedaço de carne é devorado com a voracidade de cinco leões. O homem desvia um instante o olhar para o jornal ao lado da mesa e lê rapidamente na página do setor policial:
“Menor de rua é encontrado morto no último andar de uma construção abandonada”.
Para alguém que parecia não existir, até que a ocasião de sua morte ganhou algumas linhas na imprensa local. Era o sombrio e único instante de reconhecimento do qual M. nem pode gozar. Ninguém jamais soube os motivos do acontecimento. Ninguém jamais procurou saber. Poderia ter morrido congelado ou brigando por algum cobertor velho. Poderia ter morrido de fome ou simplesmente ter se cansado de imaginar uma outra vida. Na verdade pouco importava. Era assim mesmo, a notícia de sua morte serviria agora como forro para a gaiola de algum pintassilgo. M. não pediria mais esmolas no semáforo, como uma mancha de sujeira no pára-brisa dos carros. Quem sabe a sensação de limpeza até pudesse melhorar as vendas do comércio.
Naquela tarde, uma fina chuva começou a cair sobre Cidade Imóvel, tentando inutilmente amolecer as pedras e lubrificar as ruas movimentadas do lugar.

Poi Zé

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Sofrimento involuntário


Som de telefone, ronco de motor, choro de criança, sangue no asfalto, vidros embaçados e eu na janela a pensar: De onde vem a força que arranca de dentro do peito de alguém, sem dó nenhum, um sonho qualquer? Pode lhe parecer um drama, e que pareça se é esta a percepção que tens da dor.
O que há de errado com quem sente? Porque é humilhante chorar, e rir lhes parece a saída para tudo? Não há o que me faça entender a tamanha ousadia com que uns negligenciam os desejos de outros sem ao menos ter piedade.
Carlos Drummond de Andrade disse uma vez que o sofrimento é opcional. E salve o poeta que mais infeliz não poderia ter sido em tal afirmação. Certo de que não optamos pela dor, ele deve ter esquecido que ninguém opta por morar na favela, nem por passar fome, ter um pai na prisão, ter perdido um filho para o tráfico ou ver a mãe apanhar e ter de ficar calado.
Que se escancare o sofrimento, que pixem a palavra dor nos muros da cidade, que os malditos falsos risos que florescem às custas dos que tem que matar para viver sejam abafados por lágrimas, gemidos, gritos de sentimento verdadeiro. E não, não afirmo que a felicidade não existe. Mas garanto que ela também não é algo pelo qual podemos optar. Se formos bonitinhos e baixarmos a cabeça para tudo, talvez possamos ser contemplados com o sentimento escolhido para exprimir uma vida normal. Mas se Deus não existe e as pessoas não prestam, em que devemos acreditar para acabar com esse sofrimento involutário?!

Dolorosamente,

alguém com mais um breve sonho arrancado do peito.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Mapa-mundi


E aí galera dO Câncer...
Eis que finalmente o cancerígeno Andreizówski mandou um texto pr'este blog degenerativo. O autor é o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, figura importante para a América-Latina. Esta discussão rende...
(Tiaguera Gaita Negra)

Mapa-múndi

Ao Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão.
Não são poucos os intelectuiais do norte que
se casam com as revoluções do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos.
Prestigiosamente choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão;
e nunca demoram muito para descobrir que o socialismo é o caminho mais longo para chegar
do capitalismo ao capitalismo.
A moda do Norte, moda universal, celebra a arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria cauda
e acha que é saborosa. A cultura e política se converteram em artigos de consumo.
Os presidentes são eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem outros heróis mais heróis do que os banqueiros.
A democracia é um luxo do Norte. Ao sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém.
E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não seja.
Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte , que é a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas.No sul do mundo, ensina o sistema, a violência e a fome não pertencem à história, mas à natureza, e a justiça e a liberdade foram condenadas a odiar-se entre si.

Eduardo Galeano

segunda-feira, 10 de março de 2008

ENSAIO SOBRE A PASSAGEM DO CRISTO NO MUNDO E SEU LEGADO POLÍTICO – CÔMICO - TRÁGICO

Da revolução social ao igrejismo mercantil

Tiaguera Gaita Negra Man


Yeshua, conhecido hoje como o primeiro cristão da história, foi um judeu de paz&amor. Sua juventude foi especialmente cheia de virtudes. Diferente da maioria dos judeuzinhos, o garoto Yeshua logo despertou interesse pelos mais diferentes campos do saber:



- filosofia - adorava mitologia;
- literatura - inspirado nos mitos, criou diversos contos, também chamados de parábolas; e ainda devorava as antigas escrituras hebraicas. Seu autor de ficção favorito era Moisés, a quem se atribui o best-seller “Pentateuco”. O “Gênesis” era o livro de cabeceira de Yeshua;
- política - tinha enorme apreço aos debates com os velhos sábios nas escadas do Templo de Jerusalém e logo cedo optou pela esquerda, devido principalmente à condição de classe ocupada pela sua família: o pai era marceneiro em uma grande indústria moveleira e a mãe era empacotadeira nas Casas Belém;
- música - sua banda favorita era “Os Reis Magos do Oriente” e, no estilo clássico, curtia muito os “Salmos de Davi para Flauta e Coro”;
Não era muito apegado à religião, porque achava tudo uma grande ferramenta de dominação das massas.

Não demorou muito para que o rapaz fizesse amizade com outros jovens. Aos poucos Yeshua formou um grupo de amigos, do qual era líder por espontaneidade. Rebelaram-se contra o sistema, abandonaram as cidades e passaram a ser nômades vivendo em comunidades. A partir daí rolou muito sexo, drogas, rocha rolando em tudo que era monte, festivais onde se dançava nu em regiões de campos às margens do Jordão e em acampamentos no deserto; e é claro, muita paz & amor. Cabelos e barbas cresceram. As vestes passaram a ser tecidos grandes e folgados. Bebiam um melzinho verde das Índias, com sabor ácido, que os deixava pra lá de Bagdá. Alimentavam-se de peixes que pescavam no Mediterrâneo e pães trazidos pelo grande número de pessoas que aderiam ao grupo. A vida em comunidade os ensinou a partilhar o que era de ordem material. O principal fenômeno conseqüente desta prática foi posteriormente chamado de “multiplicação dos peixes e dos pães”. O campo espiritual era levado muito a sério pelo grupo. Rezam as lendas que grandes feitos foram operados por Yeshua, sendo o mais famoso a transformação de água em vinho. Conta-se que, nesta feita, Yeshua bebeu tanto vinho que passou quarenta dias e quarenta noites soluçando. O ruído produzido pelo soluço, segundo a lenda, pode ser escrito pela onomatopéia “hippie”. Em verdade, vos digo que a grande maioria desses fenômenos de esfera espiritual, cujo conhecimento é amplamente divulgado e ofertado hoje em dia pelo mercado igrejista, não é nada além de ficção. Coxo que anda, cego que vê e defunto que sai da tumba é puro sensacionalismo para atrair audiência.




A revolução se encaminhava para o clímax quando, de um salto, começou a ruir. Eis que vinha à tona a mais profunda das mitológicas profecias de Johniel, filho de Lennão: “O sonho acabou”. Yeshua foi pego pelos caras do regime. Morto pelos donos do poder, com o aval do povo alienado. Tinha então trinta e três anos de idade. Não teve como fugir à cruz. Sua longa barba foi logo associada ao Partido Comunista. O Estado, autoritário e repressivo, era na verdade uma extensão do Império Romano - era preciso pagar impostos ao poderoso César, que se dizia dono do mundo. Em recordação aos quatro séculos de escravidão dos “Filhos de Israel” no Egito, o nome dessa política internacional ficou sendo “Neo-colonialismo”. Séculos mais tarde, alguns pensadores quiseram chamar esse período histórico e o período seguinte de “Globalização”, mas foram perseguidos porque, na época, ninguém acreditou que o mundo fosse redondo como um globo.















Judas, o traidor, foi oficialmente culpado por entregar Yeshua. O que só mais tarde emergiu aos pesquisadores desta corrente científica é que, na verdade, Judas foi apenas um bode expiatório. O próprio Yeshua relatara muitas vezes aos seus o destino que o aguardava. Deu-se, afinal, que Judas, ao invés de enforcar-se como acredita a quase totalidade da opinião pública, foi exilado. Em outras palavras, por suspeita de participação na “Sociedade Alternativa”, foi convidado a se retirar do país. Embarcaram-no direto para Roma, onde instalou-se de improviso nas periferias, às margens da sociedade. Lá, a massa alienada pelo organismo, depois de suar arduamente para comer o Panis, entretia-se assistindo ao reality show dos gladiadores no Circenses - que deveria ser essencialmente uma concessão pública, mas que era dominada pelos promoters de espetáculos sangrentos.

Enquanto isso, em Jerusalém, um grupo de fanáticos tentava ressuscitar Yeshua. Este, devido à repentina exposição pública, passou a ser chamado de “O Cristo”. Seus seguidores inventaram o “Fogo do Espírito Santo” e começaram a falar em línguas estranhas. Criaram um grande golpe de marketing e produziram um sósia de Yeshua para simular a Ressurreição dO Cristo. O nome do sósia era Paulo, porém, com a nova mania de falar em línguas, os adeptos de Yeshua lhe deram, ao acaso, um nome que soava semelhante à língua dos povos bárbaros bretões encurralados por Roma naquele tempo. O nome era, precisamente, Billy Shears. Outros, também pelo acaso da nova língua “espirito-sântica”, preferiram o chamar de Paul. Mas a parceria não durou muito. O quarteto dos evangelistas, que na dita língua era chamado de Sargent Pepper's Lonely Hearts Club Band, logo foi abandonado por Paulo que, arrogante e ambicioso, preferiu seguir carreira solo em outras paradas. Enfim, depois de iludir algumas prostitutas, pescadores e soldados com truques de mãos perfuradas por pregos, todos os homens de Yeshua, inclusive Billy Shears, se dispersaram. Pelo menos em Israel, os agitadores foram dominados e a situação foi controlada. Tanto que por lá, até hoje, O Cristo não é tido por grande coisa.

Já em Roma, a repercussão foi diferente. Paulo, em suas andanças divulgando as idéias dO Cristo - sempre com interesses pessoais, é claro -, acabou por encontrar Judas. E como este havia guardado as trinta moedas de prata de que tomou parte no grande mal-entendido da “traição”, resolveram montar um negócio. Alugaram uma sala comercial razoável e fundaram a IGREJA dO CRISTO. Logo o ex-agitador Simão, O Pedro, juntou-se a eles no novo e promissor empreendimento. O começo foi complicado. Passavam a maior parte do tempo remetendo epístolas para possíveis clientes da empresa e, às vezes, eram presos.

Mas o sucesso finalmente chegou e os fez prósperos empresários. A igreja assumiu uma estratégia popular e conquistou tantos romanos miseráveis que, mesmo sendo pobres coitados, abarrotou os cofres da empresa. A antiga religião romana ia perdendo seu espaço e o governo, desesperado, eliminou Simão. O sócio da IGREJA dO CRISTO morreu tão gloriosa e dolorosamente quanto Yeshua. A maioria dos estudiosos defende que Paulo aproveitou bastante o dinheiro que ganhou, e morreu de velhice. Para sobreviver ao governo romano, acredita-se que Paulo tenha comprado sua liberdade de César a custa de muita prata. Quanto a Judas, esse foi longe. Viveu muito além de Paulo, e sua igreja prosperou tanto, que suas 30 moedas de prata viraram 3.000.000 (três milhões) de moedas. Por isso, o dono lhe alterou o nome, para ajustar à nova realidade numérica: IGREJA CAPITAL MERCANTILISTA DO SÉTIMO DÍGITO. Somente três séculos depois, os homens do poder, enfraquecidos pela dimensão assombrosa da nova religião popular, decidiram aderir à nova tendência de mercado. A medida foi certeira. Judas faleceu, deixou a empresa na mão de acionistas, e Roma finalmente estatizou a Igreja. Dessa vez lembraram de Simão, O Pedro, figura interessante para o papel de mártir, e o passaram para a história como o primeiro Papa da IGREJA CApiTÓLICA APOSTÓLICA ROMANA.

Considerações Finais


Este ensaio, de criterioso método científico, é um resgate da passagem do judeu Yeshua pelo mundo, por um viés ocultado propositalmente pelos detentores e protetores de tal conhecimento durante os séculos. Após este levantamento de fatos e contextos sociais, políticos e cômico-trágicos que permeiam a vida dO Cristo, concluí-mos que os seus ideais apaixonados serviram de ferramenta para a execução de um modelo social exatamente oposto ao que ele desejou. Quanto a Deus e o Diabo, esses, graças a Marx, Nietzsche e Cia., estão excluídos da conceituação aceita pela metodologia do presente estudo.

E vão pro inferno, seus diabêdo do mau!!!!!!!!!!!!!!!!

quinta-feira, 6 de março de 2008

***

E quanto a nós
Morremos aqui
Mendigando um dedo de Deus
Esperando a febre passar
O sol aquecer nossos rostos
E a água refrescar nossos corpos.
Sonhamos com dias melhores
Com dores menores
Com sorrisos sinceros
E amores eternos.
Escondemos nossos corações
Lutamos para não chorar
Fingimos compaixão
E damos tempo ao tempo.

ingo

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O mercado das relações físicas


No tempo em que gostosa era só a maionese, que gato era só aquele bixano peludo, e que balada era sinônimo de levar tiro, ouvia-se falar em namoro. Hoje os tempos são outros. O nome dado à troca de beijos e até à carícias mais íntimas, que não comprometam nenhuma das partes, é ficar.

Fosse de se esperar que as mulheres reclamassem desse envolvimento sem compromisso e superficial, pois o que assistimos nas novelas de época é que as moças tinham muita pressa de encontrar um marido.

Muito pelo contrário. Hoje as fulaninhas querem um ficante, um “enrolado”, ou um sei lá o que. Além disso, grande parte assume que prefere ficar sem compromisso porque os homens geralmente são infiéis, fazem jogo de ciúme, e tornam os namoros de hoje em dia muito frívolos.

Conhecem-se, beijam-se, é te amo de cá, te amo de lá, uns dois meses depois vão para a cama, e quando o negócio esfria, uns 10 ou 15 dias depois, é me esqueça daqui, te odeio de lá. Isso quando não conseguem a proeza de engravidar na primeira vez, ou até mesmo contrair doenças sexualmente transmissíveis, lamentável. Quantos casais que você conhece tem mais de um ano de namoro? Se conhecer mais que cinco, parabéns! Você convive com um grupo de pessoas do século dezessete.

E os homens como agem? Eu diria que mulher virou mercadoria. Além do uso gratuito de algumas que se dispõe por aí, hoje pode-se comprar bundas, peitos, coxas e etc, pelos mais variados preços. O que antigamente era fazer amor, ou tirar a virgindade da mulher amada, hoje entre as variações do transar e do fazer sexo, também temos o comer. Isso mesmo! Grupinhos de amigos andam por aí competindo na “começão”, comentando sobre a “sabonete de rodoviária” que já escorregou pela mão de no mínimo uns três do mesmo convívio.

E não, não são só os homens os culpados pela vulgarização dos corpos, dos relacionamentos. O velho ditado “se um não quer, dois não fazem”, continua vivíssimo. A guerra dos sexos começou bem antes da primeira guerra mundial e segue como se fosse uma guerra fria.

Outra comparação que pode ser feita ao ficar, é a do condicional. Você sai para uma festa, observa bem os “produtos” que lá estão, provavelmente dançando de mini-saia ou escorados na parede com um copo na mão e balançando a cabeça no ritmo daquela música que você odeia, mas também balança a cabeça pra fingir que gosta.

Escolhe o “produto” que a aparência mais lhe agradar, e leva condicional por uns beijos, uma noite, ou no máximo um mês. E é claro que diferente do namoro, se não gostar pode devolver. Não precisa ficar até se apegar ou sentir ciúme. Não precisa se preocupar com dar satisfações. Não precisa se tornar responsável pela felicidade ou bom uso, é só provar e se não gostar continuar provando e provando até encontrar o produto certo. Pode devolver sem peso nenhum na consciência e com a certeza de que na próxima noite, ou no final de semana seguinte, a mercadoria já vai estar “reposta” no mercado.

por nandadreier

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O Direito de ser um babaca
















- Bom dia Seu Matias, tudo bem com o senhor?
- “Seu Matias” não Arlindo, agora “Doutor Matias”!
- Me desculpe pela pergunta “dotô”, mas eu não sabia que o “dotô” era médico...
- Esqueceu que acabo de me formar em Direito Arlindo?
- É mesmo! A senhora sua mãe tinha comentado pra nóis... meus parabéns “dotô” Matias!

Sem entender muito bem o que se passava, Arlindo, que era o jardineiro da casa onde Matias morava, foi reto contar à mulher que o filho mais velho da patroa um novo “dotô”.

- Viu Joana, sabia que agora o Matias é “dotô”?
- Ué? Mas ele não tava estudando pra trabalhá como adevogado?
- Pois é! Mas ele me disse que lá onde ele estuda os adevogados também são “dotô”, assim como os médicos e os dentistas!
- Nossa! Então agora ele é importante mesmo, né Arlindo?!

Ainda decepcionado pela “ignorância” do jardineiro, Matias, que ainda não havia ganhado o tão desejado carro de presente do pai, também “dotô”, pegou o ônibus e foi à universidade ver quando ficaria pronto seu diploma. Ficava indignado pelo jeito tosco com que as pessoas se vestiam, com camisetas velhas, descabeladas, desleixadas. “É por isso mesmo que esse país não vai para frente. Também, com gente desse tipo”, pensava o mais novo “dotô” da cidade.
Sentado em um assento à direita do veículo, Matias torcia para que nenhuma daquelas pessoas sentasse ao seu lado. Não adiantou. Na metade da viagem, ainda faltando um tempo considerável até se chegar à instituição, uma moça, mais velha, de cabelos laranjados, brincos de pena e uma camisa desbotada de uma banda inglesa, lhe pediu permissão. Sentou.

- Bom dia! - sorriu a moça estranha.
- Oi. Educado ele.
- Putz, estudar de manhã é uma tortura mesmo, né? - puxou conversa a garota que tinha as unhas pintadas de um tom escuro.

A pergunta dela não o deixou a vontade. “Onde já se viu? Como uma pessoa que tem preguiça em acordar cedo pode um dia ser alguém na vida?”, se questionou em pensamento, mas respondeu à ela:

- Não vejo problema.
- Eu sim! Mas fazer o que, né? Esse mundo funcionalista não nos dá muita opção. Você faz que curso? - questionou a moça estranha.

“Mundo funcionalista. Pior se fosse um mundo desleixado como você”, pensou Matias em responder, mas se conteve:

- Me formei em Direito. Vou ver quando fica pronto meu diploma.
- Então estou falando com um “doutorzinho”! - brincou ela para descontrair.

Ele sabia que a garota, com longos colares, não merecia sua digna atenção. “Além de tudo tenho que agüentar piadinhas dessa aí. Pelo menos temos postura e não somos como o pessoal desses cursos, nos quais os alunos passam o dia brincando de entrevistar, de construir prédios, e mexer com animais ou lidando com loucos”, remoeu em pensamento antes de responder:

- Pelo menos temos objetivos e somos determinados, ao contrário de grande parte desses cursinhos da universidade, que ficam filosofando coisas que não existem. – falou Matias.
- Acho que isso ou é prepotência ou insegurança! Ah, e os botões de sua camisa estão desalinhados em relação à posição da fivela do cinto! – provocou a moça que dormia até mais tarde.
- Quem é você para querer me classificar? – questionou Matias enraivecido.
- Eu?! Ninguém! Oras bolas! – respondeu a garota estranha enquanto o ônibus encostava e determinava o fim da viagem.

Desceram, ela antes e um pouco depois Matias. A garota estranha o esperou, lhe pediu desculpas pela brincadeira, sorriu e lhe desejou sorte na carreira. Matias apenas lhe disse “tchau” e seguiu em direção ao local que lhe levara de novo à universidade. De expressão fechada, do mesmo modo que a ignorância do jardineiro, também não entendia a ousadia e falta de bom senso da moça de camisa desbotada. Se foi.
De sorrido nos lábios, a moça de saias longas e floridas e óculos grandes, seguiu em direção ao bloco onde terminava o doutorado em Literatura. “Ele ainda vai ser alguém na vida!”, pensava em voz alta a respeito do “dotô”, enquanto caminhava e contabilizava mais um dia de chegada atrasada à aula. Se foi.

***

- Felizmente, para toda regra há diversas e confortáveis exceções, seja em relação ao “funcionalismo” ou mesmo ao “desleixamento”.
- O “dotô” do Direito foi apenas um exemplo corriqueiro. A situação, infelizmente, é clichê em infinitas profissões.
- Não, ao contrário do jardineiro e de sua mulher, não acredito que dentistas e médicos sejam doutores, a não ser que realmente tenham o título, assim como qualquer outro profissional, ao exemplo dos que fazem entrevista, dos que constroem prédios, mexem com animais ou lidam com loucos.
- Meu pai não tem título algum, mas sabe assentar um tijolo como advogado nenhum que eu conheça. Já minha mãe, também desprovida de Doutorado, faz uma torta de bolacha de causar inveja em muita médica (as dentistas ficam nervosas, pois a torta contém bastante açúcar!).

ingo

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Desabafo comunista???














Toda vez que acompanho uma discussão sobre comunismo sinto-me contrariado: os anti-comunistas me incomodam por sua falta de sensibilidade, e os próprios comunistas me decepcionam pelo mesmo motivo. No fundo, pelos discursos que acompanho, parece-me que todos almejam o mesmo, mas encontram acolhimento para seus ideais em diferentes espécies de sentimento, seja na compaixão, no egoísmo, ou qualquer coisa que o valha. De minha parte, acolhi esta ideologia há alguns anos, tendo, com o passar do tempo, encontrado diferentes argumentos para dizer-me assim. Mas, do jeito que entendo o comunismo hoje, sinto-me incompreendido por alguns e mal entendido por outros; na bem da verdade, poucos são aqueles que me proporcionam a sensação de dividir o ponto de vista a este respeito. E, já que este espaço está aqui para que livremente lhe façamos uso, aproveito-me dele para registrar um desabafo – de um comunista que nem sabe se pode ainda dizer-se comunista.
Enfim, findando a enrolação, digo-lhes o que para muitos já é sabido: é comum alguém que abertamente diz-se comunista logo receber alguns adjetivos – os quais eu mesmo já experimentei, do tipo: ‘metido a revolucionário’, ‘rebelde sem causa’, ‘doutrinador’, ‘ingênuo’, e outras alcunhas mais que não consigo recordar. Talvez muitos de nós, no ímpeto de botar para fora todas as convicções que nos foram contrariadas e estão entaladas na garganta, acabamos por trocar os pés pelas mãos, extrapolamos, e causamos essa impressão. Inevitavelmente, e talvez por isto mesmo, por vezes me tratam como se fizesse parte daquela galerinha comunista do segundo grau, que, sem querer estereotipa-los, andavam de um lado para o outro com a camisa do Che, fazendo lá seus discursos sobre “os deveres e responsabilidades de quem tem mais” e “os direitos de quem tem menos”. Mas, na verdade, não é isto que me interessa. Não mesmo! Até porquê minha ‘adesão’ ao comunismo deu-se por motivos outros, que não apenas de ordem econômica – e me pergunto: como é que alguém pode dizer-se comunista, se for para perpetuar, em suas idéias, o grande mote da filosofia capitalista: ter? Que tipo de comunista é aquele cujo objetivo final é eliminar as diferenças de classe, declarando que o que as distingue é o poder aquisitivo, e atacando justamente – e simplesmente – neste ponto?
Eu mesmo já fui um comunista por sofrer pelos outros, por sofrer pelo povo, por alimentar em mim mesmo um dos sentimentos que hoje considero dos mais baixos: a pena; a compaixão. Hoje, digo-me comunista por mim e por alguns que compartilham do meu mesmo ponto de vista – ou, quem sabe, faça tudo isso apenas por medo de negar meu passado de forma tão repentina. Os problemas do povo, estes, sinceramente, não me são mais prioritários. Mas o que importa é algo que me aconteceu certa vez, num amanhecer, quando um amigo resumiu muitos dos meus sentimentos em apenas uma frase:
- Como é triste o nascer do sol no capitalismo!
Depois de uma martelada dessas, o cara cai na real e percebe aquilo que todos os sentidos querem lhe mostrar o tempo inteiro, mas que, teimosamente, não quer aceitar: mãos tateando o cimento da calçada; gosto de atum enlatado; cheiro sufocante de fumaça; olhos ardendo de cansaço, tentando divisar o horizonte matinal, mas tendo os prazeres interrompidos por blocos e blocos de pedra erigidos ao redor; passos frenéticos apressados batendo contra o chão, ronco de motor; alguma bela melodia??? NÃO! E querem entender as catástrofes climáticas e a tristeza pós-moderna, achando que reciclar o lixo resolve um problema e ganhar muito dinheiro resolve o outro... tolice.
E tem gente que já me disse: “é besteira filosofar sobre as coisas pequenas da vida.” Ora, mas este é um dos grandes males do capitalismo moderno: homens pouco sublimes e muito objetivos... os consumidores... e, venham cá, vocês que pensam apenas sobre as ‘grandes coisas’, o que há de tão elevado neste ritual que cultuam, nesta filosofia ‘grandiosa’, o consumo desenfreado, do qual todos parecem obter uma estranha sensação de liberdade? Custo a entender. E os mesmos que me dizem ser bobeira filosofar sobre coisas pequenas são os que me acusam de ser muito arrogante, não saber ouvir os outros, não respeitar a ‘pluralidade de pensamentos’ e tudo o mais. Talvez minha personalidade impetuosa cause mesmo esta impressão, mas estou convicto a meu próprio respeito de ser um apaixonado por idéias novas, convergentes ou não com minha linha de pensamento – desde que, fique bem claro, sejam idéias novas, e não repetições de valores milenares disfarçados com trajes moderninhos... e isso é o que menos existe: custo a conhecer alguém que me apresente idéias realmente novas (e próprias), para que possa ouvi-lo e, assim, respeitá-lo, concordando ou discordando. E, pensando sobre isso agora, acho que o comunismo me atraiu, em parte, justamente por isso. Nele, encontrei embasamento para contestar algumas ‘grandes verdades’ da sociedade, e talvez tenha entendido o que Nietszche quis dizer com ‘criar valores novos’ – se é que alguém pode dizer ter entendido Nietszche. (Mas, ora, ler é tão subjetivo quanto escrever, ouvir tão subjetivo quanto falar, então será mesmo possível alguém entender outrem?).
Mas isso é papo para outra hora... agora, o espaço em branco do papel está acabando, e preciso terminar este negócio confuso. Digo tudo isto correndo o risco de, daqui a alguns anos, tomar este texto em mãos e achar tudo o que escrevi um grande monte de bosta, simples besteiras de um rapazote. Mas esta é justamente a melhor parte: freqüentemente me divirto, deleitando-me com as coisas que escrevia ou pensava há bem pouco tempo atrás. Então percebo o tanto do caminho que já trilhei. “Partir, tão bom, mas para que chegar?” É triste ver um homem sólido em suas convicções . Aí, significa que a estrada acabou, e a viagem teve seu fim...

lontra voadora

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Vida de clichês piegas














I

- Então vai! Se você acha que essa é a melhor opção, que a sorte te acompanhe – dizia Pedro desistindo da idéia.
- Mas não queria que fosse assim. Ainda podemos ser bons amigos. Quem sabe um dia...
- Quem sabe um dia? - interrompeu ele antes que Janaína terminasse a frase.
- Vai fazer o quê? Deixar para o tempo resolver? – questionou Pedro.
- Não é isso – tentou ela argumentar.
- Como não? – perguntou ele num misto de raiva e dor que lhe faziam ranger os dentes.
- É que não dá mais. Você não consegue entender... – vagou Jana.
- Na entendo mesmo. Me desculpe. Adeus!
- Mas...

II

- Alô?! – atendeu Pedro o telefone quase 2h da manhã.
- É a Jana.
- Tudo bem? - foi ele gentil.
- Não! – ela secamente.
- O que foi? – questionou ele já com um nó na garganta.
- Precisamos conversar Pedro.
- Sobre o que Jana?
- Sobre nós! – rebateu ela num sentimento de culpa, dúvida, amor e compaixão.
- Faz um mês que tenho tentando andar sozinho e esquecer isso. Não há mais nós – falou ele da maneira mais racional possível, mas com o coração latente.
- Mas Pedro, não sei se tomei a decisão certa. Tenho pensado em nós - explicou ela.
- Não há mais o que pensar Jana.

III

Se flagrou admirando uma foto antiga dos dois juntos. “Bons tempos”, pensou ele em voz alta. Sentiu saudade, vontade de ligar. Hesitou, desistiu. Fizera seis meses que fugia incessantemente dos pesadelos e da eminência de gritar Jana. Tentou ocupar a cabeça com outras coisas. Deletou a foto do computador. A imagem ficou.

ingo

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Da ira e outros anestésicos


A poltrona já tinha o formato de sua bunda desenhado. Não precisou de muito esforço ao acomodar-se para o ritual de longas horas diante da TV. Controle-remoto em uma mão e cervejinha na outra, ligou bem na hora do telejornal.
- Maldito telejornal!! – urrou ele.
Não gostava de telejornais, mas assistia mesmo assim, pois logo viria o bloco de esportes. Preferia assistir ao futebol: campeonato brasileiro, campeonato espanhol (“lá só tem craque!”) e, claro, os jogos da Seleção brasileira. Suspirava com o hino nacional antes das partidas. Amava o Brasil! Gostava de assistir novelas também.
- Malditos políticos! Nadando em dinheiro e a gente aqui na miséria – pensou ao perceber que o bloco de notícias de Brasília do telejornal havia começado. Precisava de mais uma cerveja.
Depois de amaldiçoar meio mundo durante o telejornal – governantes, grevistas, economistas, manifestantes, estudantes, e até a apresentadora da previsão do tempo, após o anúncio de uma frente fria – lembrou-se da ex-mulher, Cláudia, que o havia abandonado por achá-lo muito acomodado. Tinha que buscar outra cerveja para apagar a lembrança daquela vaca. Antes de levantar-se, prestou atenção na notícia da vinda do presidente do mundo, Jorge Busho, para a colônia Brasil.
- Só faltou o tapete vermelho. Malditos norte-americanos!!.
Na geladeira, a cerveja tinha acabado. Pegou uma coca-cola e voltou para a poltrona. Pôs-se novamente a pensar em Cláudia...
- Maldita mulher!!
Calou-se no instante seguinte. A novela estava começando.

MORAL DA HISTÓRIA: Cão que só ladra e não morde prefere assistir a televisão.

Poi Zé