quinta-feira, 10 de abril de 2008

Conto sem título de uma história sem importância


Aos 11 anos, mesmo sem conhecer Baudelaire, M. já havia flertado com as sensações de variados e baratos paraísos artificiais. Sem hipocrisia poética, preferia a fantasia à realidade. Era analfabeto e morava na rua. O mundo real era impiedoso, duro, faminto... precisava de qualquer alívio imediato para amenizar as dores do corpo e da alma. Transcendia sua mente a muitos lugares, mas o preferido era o jardim florido, onde o sol brilhava sempre e aquecia-o enquanto seus pés enterravam-se maciamente na terra úmida. Ali deitado, passeando os olhos de pupilas dilatadas pela suavidade azul de um céu de poucas nuvens, quase esquecia-se da laje de concreto fria – ao mesmo tempo seu travesseiro e cama - e da brisa gelada do inverno a arrepiar-lhe as canelas.
Desde cedo aprendeu a usar sua imaginação fértil. Esta capacidade bem desenvolvida servia como proteção a um mundo insistente em não notar sua existência. Às vezes até funcionava bem. Quase podia sentir o sabor dos almoços fartos e caros enquanto observava através dos vidros dos carrões o desfile dos mais abastados de Cidade Imóvel – que não eram muitos, mas suficientes.
Considerava-se sortudo, pois quando cansava de perambular como fantasma pelas ruas e avenidas movimentadas do progressista lugar tinha um trunfo. A catedral da igreja era admirada religiosamente devido à sua beleza arquitetônica, cravejada de vitrais e ouro. Imponente e poderosa, como um deus furioso sentado em seu trono eterno pronto para punir. Já que o padre da cidade era seu amigo, deixava-o passar o tempo que quisesse na torre do sino, a mais alta da cidade. De lugares altos como este podia sussurar seus sonhos ao pé do ouvido das estrelas. Tinham a ver com comida e abraços quentes. M. gostava mesmo de subir no telhado da torre, pois assim ficava escondido. A amizade com o padre havia ficado estranha desde aquela noite chuvosa quando o sacerdote, com o olhar de um lobo, enfiou a mão dentro do seu calção. Não ia mais até a entrada da igreja nos dias de missa, percebendo aquele mesmo olhar enquanto ouvia o sermão do lobo para a multidão. Ironicamente ele as chamava ovelhas de deus.
Intervalo para o almoço.
Garfo e faca tilintam no prato. A gordura no canto da boca brilha enquanto um suculento e gordo pedaço de carne é devorado com a voracidade de cinco leões. O homem desvia um instante o olhar para o jornal ao lado da mesa e lê rapidamente na página do setor policial:
“Menor de rua é encontrado morto no último andar de uma construção abandonada”.
Para alguém que parecia não existir, até que a ocasião de sua morte ganhou algumas linhas na imprensa local. Era o sombrio e único instante de reconhecimento do qual M. nem pode gozar. Ninguém jamais soube os motivos do acontecimento. Ninguém jamais procurou saber. Poderia ter morrido congelado ou brigando por algum cobertor velho. Poderia ter morrido de fome ou simplesmente ter se cansado de imaginar uma outra vida. Na verdade pouco importava. Era assim mesmo, a notícia de sua morte serviria agora como forro para a gaiola de algum pintassilgo. M. não pediria mais esmolas no semáforo, como uma mancha de sujeira no pára-brisa dos carros. Quem sabe a sensação de limpeza até pudesse melhorar as vendas do comércio.
Naquela tarde, uma fina chuva começou a cair sobre Cidade Imóvel, tentando inutilmente amolecer as pedras e lubrificar as ruas movimentadas do lugar.

Poi Zé

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Sofrimento involuntário


Som de telefone, ronco de motor, choro de criança, sangue no asfalto, vidros embaçados e eu na janela a pensar: De onde vem a força que arranca de dentro do peito de alguém, sem dó nenhum, um sonho qualquer? Pode lhe parecer um drama, e que pareça se é esta a percepção que tens da dor.
O que há de errado com quem sente? Porque é humilhante chorar, e rir lhes parece a saída para tudo? Não há o que me faça entender a tamanha ousadia com que uns negligenciam os desejos de outros sem ao menos ter piedade.
Carlos Drummond de Andrade disse uma vez que o sofrimento é opcional. E salve o poeta que mais infeliz não poderia ter sido em tal afirmação. Certo de que não optamos pela dor, ele deve ter esquecido que ninguém opta por morar na favela, nem por passar fome, ter um pai na prisão, ter perdido um filho para o tráfico ou ver a mãe apanhar e ter de ficar calado.
Que se escancare o sofrimento, que pixem a palavra dor nos muros da cidade, que os malditos falsos risos que florescem às custas dos que tem que matar para viver sejam abafados por lágrimas, gemidos, gritos de sentimento verdadeiro. E não, não afirmo que a felicidade não existe. Mas garanto que ela também não é algo pelo qual podemos optar. Se formos bonitinhos e baixarmos a cabeça para tudo, talvez possamos ser contemplados com o sentimento escolhido para exprimir uma vida normal. Mas se Deus não existe e as pessoas não prestam, em que devemos acreditar para acabar com esse sofrimento involutário?!

Dolorosamente,

alguém com mais um breve sonho arrancado do peito.