quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O Adidas vai bem, obrigado












Inspirado em fatos banais

Prrriiimmm (tentativa de onomatopéia para toque de telefone). Raul atende.

- Alô.
- Oi, a senhora Marlene está?
- Não.
- Humm... E quando eu posso achar ela em casa?
- Talvez hoje à noite.
- Tudo bem então. É que... Por acaso você não é o Daniel?
- Não. Ele é meu primo.
- Humm... Então você é sobrinho da Marlene?
- Sim.
- Legal. E você pode me fazer um favor?
- Posso sim.
- Eu sou a gerente da loja “dsao pkadspko” e gostaria de agradecer à senhora Marlene por ter comprado um par de tênis para o Daniel aqui na nossa loja. Você pode dar o recado pra ela?
- Posso.
- Só mais uma coisa... Você já viu os tênis?
- Já.
- E você sabe me dizer se está tudo bem com o calçado? Se não aconteceu nada de errado por enquanto?
- Tá tudo bem, que eu saiba.
- Que ótimo! Muito obrigada, viu. Quem sabe eu ligue à noite, tá? Tchau.
-Tchau.

Pausa para indignação. Raul pensa no que acaba de acontecer e fica totalmente embasbacado. Não compreende como manteve a calma e a cordialidade, apesar da secura de suas respostas. Os grilos pulam em sua cabeça. Nunca pensou que fosse passar por tamanha miséria. O tal par de tênis, que já o agradava pouco, torna-se um objeto maldito.

Três dias antes...

Deitado na cama, Raul travava uma luta interna, corpo contra mente, para se levantar. Já eram onze da manhã e vozes vindas do outro lado da porta, que dá para a cozinha, atormentavam os ouvidos do boêmio mal-dormido. Eram vozes eufóricas de quem acordou cedo e “aproveitou” bem a manhã. O sábado é sempre um dia propício para ir ao centro abandonar uma grana no comércio e, segundo a propaganda do Magazine Luiza, ser feliz.

- Agora sim! Eu vou apavorar na escola com o meu Adidas. Olha só que massa!
- Quero só ver, Daniel (quase gritando). Se eu achar esse tênis jogado por aí... Nuuunca maaaaais! Entendeu?
- Ahhh! Chega mãe. Eu já sei.
- E nada de sair com ele de bicicleta. Do jeito que tá esse bairro, é capaz de você voltar descalço. Isso se não levarem a bicicleta também!

A tal bicicleta é uma GTS, especial para manobras. Motivo de inveja entre a gurizada do bairro. Diz o Daniel que vale mais de 600 paus. O tênis é da marca Adidas, modelo ClimaCool. Custou 399 reais, pagos à vista pela mãe, que ganha o suficiente para sustentar a si e ao filho de onze anos, com um controle muito rígido do orçamento familiar. Raul, que mora temporariamente na casa da tia em função da universidade, ouvia tudo, sonolento e um tanto perturbado.

- Não creio que a tia fez isso (pensava)! Por que é que ela faz todas as vontades desse piá? É mimo demais. Não quero nem ver essa merda de tênis. Aposto que é um daqueles “pranchões” enormes que parecem mais um acessório de robô do que um calçado... cheio de frescura e brilho por toda parte, maior que uma cabeça! Daqueles que a gente nota a cem metros de distância. Bem coisa do Daniel. O pior vai ser agüentar ele se achando “o tocha”.

E assim foi. O guri encarnou o Jaspion ou qualquer coisa do gênero. Meiazinha soquete, canela fina de piá, e aquele par de naves espaciais gigantes. Passou o fim de semana todo “matando-a-pau” e, no domingo à noite, ouviu os lampejos de fúria da mãe por ter deixado os tênis jogados na área de serviço, um tanto sujos.

O dia da glória finalmente chegou: segunda-feira. O colégio inteiro teria a honra de adorar a maravilha de perto, e não mais na vitrine da loja. Ou então, sentir a amargura da derrota, por não ter um Adidas ClimaCool de 400 reais como o do Daniel. Foi só calçar o objeto do poder, ir pra escola, desfilar com passos firmes, que nem pareciam seus, e desfrutar da doce sensação de ser o melhor. O Guri se sentiu tão importante que até se deu ao luxo de menosprezar quem quer que fosse.

Na terça, Raul tenta descansar da bateria de trabalhos que acaba de enfrentar, quando toca o telefone. Sozinho em casa, faz um esforço, levanta, e atende.

- Alô.
- Oi, a senhora Marlene está?
- Não.

Responde automaticamente as perguntas vindas do outro lado da linha.

- Espera aí! Estão me perguntando se um par de tênis ridículo está bem? Será que eu dormi e estou sonhando?

E continua respondendo:

- Tá tudo bem, que eu saiba.
- Que ótimo! Muito obrigada, viu. Quem sabe eu ligue à noite, tá? Tchau.
-Tchau.

P.S.: O Jaspion fecha mais com a geração do Raul, entre vinte e trinta anos. No caso da molecada de onze, pode ser essa pôrra de Naruto, Beyblade, e sei lá o quê mais. É tudo japonês mesmo.

Tiago Franz (Gaita Negra)

8 comentários:

Anônimo disse...

Eu aprovei a publicação.
Adorei a parte do Jaspion.

E só eu que comento aqui.
Droga.
Nem sinal de vcs no meu blog.
E pior, tem até um link de vcs lá.

Anônimo disse...

Tá bom, o Tiago apareceu por lá.

hunf.

Anônimo disse...

Tiaguera, ri para caramba com o teu texto. Ri da triste e alienante realidade!
hehe

Anônimo disse...

Ah, faltou o nome:

Adriano

Anônimo disse...

Massa gente... pegaram o espírito da coisa.
Pelo menos o Adriano e a Nanda conseguiram rir um pouco. Com uma história dessas também dá pra chorar.
Coisa horrível!!!!

valeu!

Anônimo disse...

Que nostalgia, lembrei do Gigante Guerreiro Daileon!!

Do caralho o texto Tiaguera. Só acho que cometeste um pequeno errinho: não ter mandado a dita cuja do telefone pra puta q pariu!!

Nos vemos por aí rapá!

Andrei disse...

Muito bom o texto tiago.
Nanda eu não tenho o link d teu blog.

Anônimo disse...

hum...

essa história parece tão real!!!

hehehe

conheço esse 'daniel'!!!

flw