segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Amarelo


Aquele amarelo já me dava náuseas. A cor da lotação cheia de gente que não pára de balançar e a cor da sacola do cobrador, que insiste em ouvir em alto e bom som uma seleção de canções dos anos 80, que, por sinal, eu odeio. Amarelo também é a cor da blusa da mulher parada na minha frente, escorada no ferro amarelo da lotação, cantando, em enrolês, a música chata que vinha do celular guardado dentro da bolsa amarela do “auxiliar de bordo”. Consigo até imaginar um clipe à la YMCA: de repente, todo mundo se levanta dos bancos e saí pelo corredor do ônibus dançando uma coreografia sincronizada e cheia de piruetas. O cobrador faz a frente e a mulher de amarelo canta. Convenhamos, tem coisa mais chata que coreografia sincronizada em clipe dos anos 80?
Amarelas também são as caras de quem trabalhou o dia todo e agora vai pra casa, sacolejando no ônibus e contando, com sua voz metálica e amarela de cansaço, os detalhes do seu dia, da vida dos vizinhos, do marido que perdeu o emprego, da filha que mora fora da cidade… bzzzbzzzzbzzzzbzzzz, o zumbido das conversas (des)importantes; dos papos e risadas dos garotos e garotas que saíram da faculdade; dos discursos sobre futebol, política, educação ou qualquer coisa que agora não me importa.
Alguém puxa a cordinha e, ufa!, um pouco de vermelho quebra o amarelo e um biiiiip chato (não tão chato quanto o resto dos barulhos) indica que alguém vai descer na próxima parada. Mas bem que esse poderia ser o sinal para indicar “emergência”, como se dissesse: “por favor, acabemos com esse caos! Agora, calem a boca, desliguem a música, fiquem parados. Chega, por favor!”. Infelizmente, o vermelho diz para o motorista que ele deve frear bruscamente para parar no sinal que acabou de fechar e, com isso, prolongar a minha angústia amarela. O Princípio da Inércia, primeira lei de Newton, explica porque as minhas coisas, as coisas das outras pessoas e, inclusive nós (eu e os outros) continuamos em movimento e batemos uns nos outros. Amarelo de raiva.
Verde no sinal e agora só falta mais um pouco… Vermelho, biiiiiiip. Até que enfim, cheguei. Desço do ônibus e entro em casa sem nem olhar pra trás pra ver o amarelo se afastando e me despedir pensando: “até amanhã, bem cedo, logo depois que o amarelo do sol me acordar.”


suzi.

domingo, 3 de agosto de 2008

“PODE PASSAR, A ENTRADA É FRANCA!”

Dava pra ver de longe que algo havia ocorrido Eram 8h05 de uma segunda-feira de céu cinza e ar abafado. Antônio ia a pé ao trabalho quando se deparou com a cena do acidente. No meio a outras centenas de curiosos que se aglomeraram para assistir o espetáculo de entrada franca, Antônio também parou e se posicionou em um dos cantos do circo a céu aberto e vigiava cada movimento do público presente que se deliciava com a agonia da tragédia.
Naquela manhã acordara cedo com o intuito de evitar o desaforo de pegar o ônibus lotado logo no primeiro dia de trabalho da semana. Aquilo o sufocava. O ar rarefeito dentro do veículo, o empurra-empurra e o balanço descompassado o deixavam de mau-humor. Resolveu então sair antes, passou na padaria perto de casa, tomou um café amargo e comeu um pastel que pingava o óleo da fritura. Caminhava com certa pressa. Seu ponto de entrada era às 8h15. Porém, o acontecimento era grandioso e o misto de curiosidade e emoção o deteve.
Ao seu lado se encontrava uma senhora com uma criança ao colo, na frente um rapaz bem vestido, e atrás um conhecido do condomínio onde Antônio trabalhava. “Que acidente incrível, né Toni? Olha como ficaram as crianças”, comentou com entusiasmo o cara cercado por pessoas das mais diferentes descrições, todas hipnotizadas pelo fato. “É tão emocionante um acidente de verdade. Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre*”, pensou em voz alta sem perceber. Nisso, um senhor de idade avançada, logo à frente, o olhou de cara feia como se o reprimisse.
A cada visão panorâmica Antônio percebia que a multidão aumentava, o que dificultava o trânsito no local e fazia com que a polícia construísse um cordão de isolamento. Certamente o fato seria o comentário da semana na cidade, e disso ele teve certeza quando notou a chegada da imprensa. Vinham como corvos ao avistar o alimento em putrificação. Tomaram conta do ambiente, eram soberanos. Aquilo causou inveja na maioria das pessoas afastadas pelo policiamento e que passaram a observar tudo à distância, incluindo Antônio.
O homem então começou a prestar atenção nos repórteres que se debatiam pelo melhor ângulo, pelo melhor depoimento. Fotógrafos e cinegrafistas se deliciavam registrando cada passo do resgate, os danos do acidente, o saldo de feridos e mortos. A repórter da TV tomava o relato da mãe de uma das vítimas que acabara de chegar ao local. Aos prantos ela falava e chorava em frente à câmara, bombardeada por perguntas. “Será um prato cheio para a hora do almoço”, pensou ele se referindo aos telejornais que dominavam o horário do meio-dia. Sentiu náuseas. Virou as costas e seguiu de maneira atrasada ao emprego. Era forte o cheiro do sangue fresco e amargo que continuava escorrendo sobre o asfalto quente daquele início de semana trágico e divertido.

*Metrópole – Legião Urbana
ingorock